AS ASSOMBRAÇÕES DO BAIRRO ALTO -1-
Na manhã seguinte a da noite da folia em casa do Moreira, logo depois do almoço, o cabra pernóstico foi à casa de Joaquim Quaresma, proprietário de várias datas de terrenos no Bairro Alto. Era a ocupação de Quaresma o tirar esmolas para o Divino com uma bandeira bem enfeitada e um bom séquito de tocadores de violas, caixas, adufes e pandeiros, percorrendo as fazendas e povoados cantarolando, recebendo toda a sorte de ofertas que faziam, e, nessa exploração rendosa, era bem tratado e via a todos os dias novas faces e novas cenas. Era considerado como homem viajado e os seus conceitos muito acatados no Bairro Alto.
Logo que o cabra assentou-se, contou com orgulho o efeito que a sua história de assombração produzira no ânimo do velho mineiro. Lavrou um tento, disse-lhe Quaresma, julguei que o meu compadre fosse um dos poucos desabusados desta vizinhança.
É dos desabusados que um abuso com minhas histórias, contadas ao meu modo, atalhou o cabra.
Quaresma ponderou-lhe, então, que fazia mal estar cultivando no ânimo dos pobres crédulos, sem proveito algum, as suas fantásticas visões.
Contou-lhe que o Bairro Alto desvalorizou-se e perdeu muito desde quando reservaram uma das suas quadras de terreno para o Campo da Forca, chegando a ser considerado um lugar assombrado, que as suas casas muito isoladas umas das outras e as suas ruas assemelhando carreadores, eram um campo azado para nele figurarem os Saci-Pererês, boitatás e outras inventivas; que os moradores eram todos descendentes dos antigos povoadores, gente ignorante e supersticiosa, que vinham transmitindo de pais a filhos as histórias de lobisomens, cavalos sem cabeça e assim outras minhocarias, para as quais todos tinham boa disposição para ouvir e grande facilidade em acreditar; que era preciso que este estado de coisa tomasse outro molde e, portanto não continuasse com suas práticas inconvenientes.
Se o meu compadre Moreira, disse Quaresma, deu crédito a você, isto advém, tão somente do fato de ter citado maliciosamente os nomes daquelas duas mulheres e também porque ele mora, há muitos anos, neste decanto onde aninhou-se a superstição.
O compadre Moreira, continuou ele, andou muito tempo aborrecido, depois do julgamento no processo Joaquim Ferraz e seu pajem, porque como testemunha, contou só o que viu e ocultou tudo o que ouvira de sua própria mulher.
É o cãs: a negra Rita, mulher de Paulo, pajem de Joaquim Ferraz, viera à vila trazendo consigo uma rapariguinha sua filha, a fim de sujeitá-la ao tratamento de uma das mãos que fora apanhada e ralada pela cevadeira de mandioca.
Ali na vila, a negrinha gritava a noite toda de dores e, para não incomodar a vizinhança, mudaram-na para uma pequena casa no quarteirão debaixo.
Muito bondosa, vendo a Rita tão isolada e só o que a negrinha teria apenas horas de vida, resolveu fazer-lhe companhia durante a noite.
Era já tarde quando, inesperadamente entrou seu marido, com a cabeça rapada, espantado e trêmulo, o que fez a Rita perguntar, exclamando: O que é que há, meu Deus?
Paulo contou então, que no sítio no fim do carreador de fundo no mato, encontrou-se conforme combinado, com Joaquim Ferraz e a sua amante Manoela Maria, mulher de José Ribeiro; que Ferraz, tomando uma tesoura que trouxe consigo, tosquiou rente os cabelos dele, Paulo, e em seguida os da amante; que isto feito, ordenou-lhe que matasse a infeliz mulher e que, diante das súplicas desta, faltou-lhe o ânimo e então Ferraz, com a faca na mão, dissera: “não queres ficar ferro, negro” que mais de medo de morrer na ponta da faca do que o interesse de ficar liberto, dera a pancada fatal e ela tombou; que em seguida procederam o enterramento além do rumo, em terras de Manoel da Cunha, tendo antes disto ajustado a sua cabeleira na cabeça da defunta; que terminada esta tarefa disse Ferraz: “estamos garantidos., se descobrirem esta sepultura encontrarão entre os ossos os cabelos grenhos e hão de presumir que aqui foi enterrado um escravo de Manoel da Cunha.
Contou mais, que na tarde última, fora descoberto o cadáver e, ao saber disso, o seu senhor dissera-lhe que fugisse para bem longe se não queria ser enforcado.
Nesta mesma noite, morreu a negrinha e depois do enterro a Rita, alucinada e em estado febril, desapareceu, sendo encontrada dias depois, morta, perto do córrego de Nha Flor; toda esfarrapada, cheia de arranhaduras pelo corpo e com as mãos apertando o peito.
O que é assombroso em tudo isto, é que durante o dia quando o compadre Moreira andava procurando no mato de Manoel da Cunha madeiras para lavrar, dirigindo-se para um local onde havia ajuntamento de corvos, ali encontrou a sepultura já violada de Manoela Maria. Nesta mesma noite, a sua mulher aqui no Bairro Alto, desempenhando uma missão caritativa ouvia, sem esperar a narrativa que acabo de contar.
Não tendo minha comadre revelado a quem quer que seja o que ouvira senão do marido, este, atendendo aos pedidos dos parentes de Ferraz, limitou-se a contar o que vira. Só mais tarde, depois do julgamento, quando o próprio Ferraz, um verdadeiro maluco gabava-se em liberdade, de suas ferocidades nessa tragédia é que começou a contar o que sabia.
Hugo Capeto
Observações
Mantivemos o texto tal qual foi apresentado no original, fazendo apenas a correção ortográfica que se fazia necessário.
Seria interessante ler também a introdução aos textos de Hugo Capeto, que está localizado nos Mistérios de Piracicaba -1-.
Apêndice
Adufe: tipo de pandeiro quadrado de origem árabe, feito de madeira leve com membranas retesadas de ambos os lados.
Data: terreno retangular medindo de 20 a 22 metros por 40 a 44 metros.
Desabusado: que não tem abusão, que perdeu a ilusão, preconceito ou superstição.
Carreador: diz-se de ou caminho aberto no meio de uma lavoura.
Azado: que é conveniente, oportuno, propício.
Boitatá: mito indígena simbolizado por uma cobra de fogo ou de luz com dois grandes olhos, ou por um touro que lança figi oekas vendas,
Decanto: qualidade ou condição do que é decantável, exaltabilidade.
Grenho: despenteado, desgrenhado
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