segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Mistérios de Piracicaba -4-

INGRATIDÃO DE ESCRAVA



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Em um dos primeiros dias do ano, à hora inclemente do sol a pino, fomos encontrar no “Asilo” uma pobre negra envelhecida, decrépita, quase à beira do túmulo em que fatalmente cairá ao sopro gélido da morte.

Naquele cérebro cansado os pensamentos se confundem, embaralham-se as idéias e em seus lábios trêmulos, apenas adejam monossílabos imperceptíveis, palavras vagas ou mesmo, às vezes, frases incompletas e desconexas.

Mas- coisa estranha- em certas horas, no silêncio tumular daquela casa, ecoa, suave e comovedor, um cântico melodioso, um doce hino todo repassado de ternura, ungido de um encanto celeste que enternece a alma e amaina o furor do coração –é mendiga que canta.


Sentada sobre o leito rude, a olhar pela janela o rio que ali embaixo desliza manso e sinuoso, a desvairada negra parece, num momento de lucidez, lembrar-se do seu passado e reporta-se então com o pensamento às horas felizes que suas orações e do culto fervoroso que lhe ensinaram a prestar ao Supremo Criador.

Enlevada num misticismo intenso, toda entregue às contemplações, vai entoando os salmos dos apóstolos os cânticos religiosos e as breves orações em louvor àquele que, na cruz ignominiosa, derramou o sangue inocente para a salvação da humanidade pecadora.

É um quadro tão simples, mas ao mesmo tempo tão significativo e belo, que o espectador de coração sensível sente-se comovido e não pode refrear o pensamento que voa por entre as névoas da cisma e das meditações.

Ali fora, no báratro medonho das agitações mundanas, rasteja a calúnia, explode o ódio, reina a hipocrisia, estorce-se o homem nas garras da perfídia e vasqueja nas ânsias convulsivas da paixão mesquinha.

Entretanto, na pobreza de um quarto abafado, uma criatura desconhecida, sem as comodidades dos salões nem o brilho das festas, espera resignadamente o alfanje implacável da Parca destruidora sem um queixume, sem um ai de desespero, antes abismada num róseo oceano de inefável ventura.

Ali tão perto, para além do rio que serpenteia murmuro, beirando a casa humilde dos pobres, há lágrimas amargas e ódios implacáveis; mas a velhinha ignora o rumorejar do mundo e o fervilhar das misérias da terra: canta, canta piamente, invocando a presença dos anjos níveos que lá do alto a protegem, ungida de sinceridade, impregnada de um suave misticismo comovedor.

E como é belo, como é sublime assistir a este espetáculo maravilhoso de uma pobre criatura caminhando para a sepultura a modular os hinos aprendidos na fase transitória da adolescência, enquanto a humanidade, pelas encruzilhadas da vida, perde-se no labirinto do pecado, chafurda-se no lodo do crime e tomba enfraquecida no atascal mefítico da hipocrisia e da calúnia.

E assim vinha pensando, de regresso daquele benemérito estabelecimento, em que a velhice exausta e a mendacidade reconhecida encontraram lenitivo para suas mágoas e bálsamo para suas dores, quando o meu companheiro de jornada, um velho piracicabano que fora dono da primeira casa de tijolos construída na antiga Rua da Quitanda, hoje 15 de Novembro, interrompeu o silêncio:

- Veja como são as coisas. Aquela negra velha, cuja atitude de santidade tanto comoveu seu coração, foi a escrava mais ingrata de que há memória.

-Aquela pobre doida?

-Doida ou não, o caso é que a presença da negra encanecida avivou em minha memória uma recordação dolorosa de um crime, em que se via de um lado a encarnação da ingratidão e de outro, a personificação da bondade.

Reportei-me a um passado distante, a uma noite de festa, em que o povo, alegre e satisfeito ouvia no jardim a velhas músicas da antiga Banda Stipp, enquanto em um lar, até então feliz, um honrado cavalheiro, pertencente a uma das mais distintas famílias de Piracicaba, era vítima do atentado mais hediondo, uma inominável ingratidão, originada em condenável cobiça.

-Esta negra decrépita, que hoje hinos enlevadores, com toda essa beatitude que comove os visitante do Asilo, foi a figura principal deste drama horrível e misterioso, que levou ao luto e a desolação ao seio de uma família honrada e boa, bem digna de melhor sorte.

-E o pior, meu caro amigo, o pior que é que o crime ficou impune. A mão criminosa, que tão certeira e perversamente agiu, roubando a uma esposa a solicitude com companheiro fiel das alegrias e dos dissabores da vida a três inocentes crianças as carícias consoladoras de um pai amoroso, não recebeu as merecidas algemas da punição.

-É uma história bem triste, que pouca gente conhece. Se quer conhecê-la, vá à noite ao clube e eu lhe contarei tudo.

À noite, não podendo resistir à curiosidade, fui ao clube e lá ouvi, comovido, a história da velha escrava. Em velha e espaçosa casa, já demolida, da antiga rua da Quitanda, residia com sua família , em janeiro de 18**, o coronel Camargo, sitiante de haveres e proprietário de algumas das melhores casas da cidade.

Filho de rico fazendeiro natural de Itu, homem operoso e de bom coração, tinha a bolsa sempre aberta para socorrer os necessitados que, conhecendo a filantropia proverbial que o caracterizava, não vacilam em lhe estender as mãos súplices, cada vez que se viam em dificuldades.

Vivia assim o velho piracicabano, cercado de estima e do respeito de quantos o conheciam, feliz no doce aconchego do lar que tão caro lhe era.

Um dia, em conseqüência talvez de uma corrente de ar, ao sair do Teatro Santo Estevam, onde fora assistir com a esposa solícita a uma representação da companhia Couto Rocha, apanhou um esfriamento e foi para a cama.

Em sua casa vivia, neste tempo, como criada de confiança, uma negra nonagenária, que fora escrava da família e que, por amizade ou gratidão pela alforria alcançada antes da lei de 13 de maio, não quisera abandonar o “sinhô moço”, que ela ajudara a criar.

Tal dedicação comovia a família Camargo, já acostumada a tratar da negra como pessoa de casa. O enfermo, que já se achava na convalescença e que se encontrava grato ao interesse que por saúde revelava a velha mucama, disse-lhe uma noite, ao receber de suas mãos uma chávena de chá:

-Não esqueço sua bondade, minha boa Filisbina, tanto que no meu testamento você é contemplada.
-Ora, Nhonhô...
- Sim, você sempre foi uma escrava serviçal, e agora me trata como se eu fosse seu filho.

- E a negra véia quer bem Nhonhô como fio memo.

-Por isso mesmo, se eu morrer, você receberá dez contos de réis, como recompensa de seus serviços e de sua dedicação para comigo.

-Ora, Nhonhô, não fale de murrê que isto dexa a gente triste... -Ninguém sabe o que está para acontecer e eu sou previdente, Filisbina. Mas como está delicioso este chá.

E entregando a chávena à velha mucama, o enfermo deitou-se de novo, puxou as cobertas até os ombros e daí a minutos ressonava.

Felisbina, que se sentara perto de leito, de vigília, enquanto a esposa do enfermo, fatigada, descansava no quarto próximo, começou a pensar, então, no que lhe dissera há pouco, o magnânimo patrão,

Dez contos de réis... Que fortuna para uma velha negra, que de seu nunca tivera mais de alguns tostões. Era verdade que nada lhe faltara ali, nem roupa, nem fumo nem pinga... Mas dez contos de réis... Que felicidade para uma pobre como ela...

Na noite seguinte o enfermo, que já se achava em convalescença. Piorava. Uma recaída? Alguma complicação? O médico debalde procurou a origem daquele agravamento da moléstia. Fizeram uma conferência médica. O dr. Tibério, o dr. Paulo Pinto e o dr. Possolo examinaram o enfermo com carinho e interesse, mas confessaram desolados, que não podiam desvendar o mistério daquele agravamento no estado do enfermo, cuja debilidade se acentuava de hora a hora.

A pobre esposa, com olhos lacrimejantes. Não poupava sacrifícios no solícito tratamento do amado companheiro de tantos anos. A ex-escrava, cada vez revelando maior dedicação, não abandonava o quarto do enfermo.

Uma noite, a esposa aflita e chorosa, contemplava, no quarto vizinho, o pobre enfermo, quando repentinamente observou que a velha Felisbina tirava do seio um pequeno embrulho e esvaziava o conteúdo num copo dágua.

Admirada, mal contendo a respiração, a infeliz senhora ficou como que pregada ao soalho. Daí a pouco o enfermo tosse e pede água. A negra, toda solícita, dá-lhe o copo dizendo:

- Beba, Nhonhô, que a água refresca a cabeça...

O enfermo pega o copo e vai levá-lo aos lábios, quando uma voz rouca e nervosa lhe chega aos ouvidos:

- Não beba! Não beba...

Ao mesmo tempo, quase cambaleando de comoção, avança a esposa, toma-lhe o copo das mãos trêmulas e diz fitando os olhos pávidos da velha mucama:

- Miserável!... Miserável assassina... Bem andava eu desconfiada deste monstro em figura da gente!... A negra, vendo-se desmascarada precisamente quando menos esperava, caiu de joelhos e arrastando-se até o leito em que o enfermo, mudo de espanto, acompanhava aquela triste cena com os olhos esbugalhados, suplicou-lhe em voz trêmula e chorosa:

-Perdão, sinhô moço... perdão... Ai, meu Deus do céu... Pensei que o Nhonhô morria mêmo e... ai sinhô moçõ... perdão...

Aquele barulho, no silêncio tétrico da noite, chamou a atenção dos serviçais que se achavam na cozinha e que correram ao quarto.

Posto a par do que se passava, agarraram a negra velha, enquanto um próprio sobrinho da criminosa, indignado com a inominável ingratidão gerada pela cobiça sórdida dos dez contos de réis, com que a mucama sonhara dia e noite, saiu à procura do alferes P......., que era neste tempo o delegado de policia.

A presença do alferes P..... e de sua ordenança infundiu maior terror à criminosa, que manietada, continuou a gemer: -Ai meu Deus do céu... Perdão, sinhô moço... perdão, sinhô... perdão pra mãe negra...

O pobre enfermo, com lágrima nos olhos, assistia a tudo com um silêncio quase inexplicável.

Afinal, quando o delegado, num gesto enérgico, mandou que sua ordenança levasse a criminosa para a cadeia, o cel Camargo levantou-se um pouco de leito, estendeu a dextra e disse com voz fraca:

-Deixem-na...

Todos olharam com espanto. E ele continuou:

-Ela foi minha ama... Era dedicada e boa... Depois... vejam como está arrependida”

O delegado relutou. Tais foram, porém as súplicas do enfermo, que não foi possível resistir. E, com o generoso perdão, foi a negra para a casa de uns parentes, onde voluntariamente se enclausurou.

Dois meses depois o cel Camargo, em conseqüência do vidro moído que lhe ministrara a velha mucama, em noites consecutivas, falecia, pedindo ainda, à hora suprema de expirar, que nada fizessem à sua velha ama, que ao receber a notícia fatal, chorava e ria ao mesmo tempo.

Estava louca a desgraçada ambiciosa criatura, que tão mal pagara os benefícios recebidos de seu magnânimo Sinhô moço...

Hugo Capeto


Apêndice Mucama: escrava ou criada negra, geralmente jovem, que vivia mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios. Manietar: amarrar as mãos, tolher os movimentos. Enlevado: em arroubos de encanto, maravilhado extasiado. Báratro: abismo, voragem, inferno. Vasquejar: ter convulsões,contorcer-se. Parca: ma mitologia clássica, cada uma das três deusas (Cloto, Láquesis e Átropos) que determinam o curso da vida humana, morte. Níveo: relativo à neve, branco. Chafurdar: espojar, evolver-se em, corromper-se. Atascal: lugar onde há lama, lamaçal. Mefítico: nocivo à saúde, tóxico, pestilento fétido. Mendacidade: característica de ser mentiroso, falso. Encanecer: branquear os cabelos gradativamente.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Mistérios de Piracicaba -3-



Assombrações do Bairro Alto -2-



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Debalde o velho Moreira tentou conciliar o sono naquela noite de folia.






Recordara-se que, como testemunha jurada, ocultara grande parte do que sabia, para não agravar a situação do réu.



Passou lhe na mente que as almas não podiam pedir vingança contra Joaquim Ferraz, que já tinha sido despachado para o outro mundo por um tirinho carteiro que lhe descarregarei o Manduca Pereira, quando aquele pretendeu passar-lhe uma sova com um rabo de tatú.



Convenceu-se que as almas das duas mulheres estavam revoltadas contra José Ribeiro, marido de Manoela Maria, contra ele, Moreira e os jurados; contra o sem-vergonha José Ribeiro, porque a despeito de ter com convicção denunciado Joaquim Ferraz como sendo o autor do assassinato de sua mulher, veio, mais tarde, depois de ter comido bola, declarar publicamente que o cadáver encontrado,a cuja exumação assistiu, era de cor preta e tinha cabelos grenhos, ao passo que a sua mulher era branca e de cabelos lisos e compridos.

Contra ele e os salafrários dos jurados porque não souberam cumprir o juramento prestado com a mão sobre os Santos Evangelhos.



Cobriu então a cabeça, receoso de que os espectros descritos pelo cabra pernóstico surgissem no seu quarto.

Assim abalado, os fartos goles de quentão, que havia tomado durante a folia, entraram em ação.



Começou a transpirar com abundância e, depois, foi atacado por uma espécie de crise imaginaria que se prendia ao crime praticado por Joaquim Ferraz e o seu pagem.



Desenrolou-se na sua imaginação todo o cenário de sofrimentos da infeliz Manoela Maria: os rodeios e tretas de Ferraz para transviá-la, a vida escandalosa que ambos levaram na tapera velha, durante meses; os ciúmes e ameaças aterradoras do amante; o passeio no carreador do mato até chegar no cerne de cabriúva estendido ao lado do caminho, onde se assentaram até que viesse o negro Paulo, munido de um bom cabo de foice, a súplica que de joelhos, chorando com os braços cruzados na cabeça a amásia fazia para que não a desfigurassem cortando os seus longos cabelos; a ordem áspera dada ao pagem para que desse o golpe mortal; a ferocidade com que cortou os seios da vítima já prostrada no chão e os dois talhos longitudinais feitos no couro da cabeça com o fim de grudar e fixar, com o sangue que vertia e coagulava, a cabeleira grenha; a exumação do cadáver e a sessão do júri, duas únicas cousas que realmente testemunhara.



Estranhou que nesta exumação o cadáver tivesse as feições da mártir Santa Filomena, que vira no quadro pendurado numa das paredes da sacristia da matriz.



Notou também que o júri não se compunha do mesmo pessoal que ouvira com tanta atenção o seu depoimento;—o juiz tinha a figura de José Ribeiro, marido de Manoela Maria; o promotor a de Manoel da Cunha, senhor do sitio onde fora encontrado o cadáver: e os jurados homenzinhos com o tipo de foliões. Distinguiu a figura sua pessoa que se dirigia para prestar o juramento, quando o pulso forte de Manoel da Cunha o deteve, segurando-o pelo braço com um fortíssimo aperto.



Despertou muito assustado e levantou-se com a imaginação muito exaltada.



Desde então, durante meses, só se sentia bem com o dia claro e parte da noite enquanto havia lume, quando naturalmente, os fantasmas não se atreveriam a aparecer. Mas esse relativo estado de sossego era pago caramente quando tinha que se movimentar à noite, mesmo nas de luar.



Quantas sombras e figuras misteriosas se interpunham no seu caminho. Como se lhe arregalavam os olhos avistando ao longe uma vaca pintada, deitada no meio da rua! Quantas vezes deixou de olhar para traz, com o coração batendo fortemente, receoso de que visse espectros seguindo do perto os seus passos!



Quantas vezes os seus cabelos só eriçaram e as suas pernas bambalearam com a aproximação de um redemoinho de vento, por passar-lhe pela idéia o encontro que tivera o cabra.



Durante este estado de excitação fantástica, tomou-se Moreira, de fato, de uma esquisita mistura de grande credulidade e imaginárias visões.


Por pouco, devido ao contido, não ficou o Bairro Alto envolvido numa atmosfera de sonhos e fantasias.




Estranho como pareça ser, da própria credulidade dos moradores, adveio entrar o Bairro Alto nos moldes ambicionados por Joaquim Quaresma.



O padre José Gomes, finório e no expediente pratico, fez anunciar que havia recebido de Roma relicários que, quando trazidos no pescoço podia, qualquer um, rezando o magnificat, sem receio enfrentar o sobrenatural e afugentá-lo.



E assim, com a distribuição larga destes relicários, deixou o Bairro Alto do ser um lugar mal assombrado.





HUGO CAPETO

Mistérios de Piracicaba -2-

AS ASSOMBRAÇÕES DO BAIRRO ALTO -1-



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Na manhã seguinte a da noite da folia em casa do Moreira, logo depois do almoço, o cabra pernóstico foi à casa de Joaquim Quaresma, proprietário de várias datas de terrenos no Bairro Alto. Era a ocupação de Quaresma o tirar esmolas para o Divino com uma bandeira bem enfeitada e um bom séquito de tocadores de violas, caixas, adufes e pandeiros, percorrendo as fazendas e povoados cantarolando, recebendo toda a sorte de ofertas que faziam, e, nessa exploração rendosa, era bem tratado e via a todos os dias novas faces e novas cenas. Era considerado como homem viajado e os seus conceitos muito acatados no Bairro Alto.


Logo que o cabra assentou-se, contou com orgulho o efeito que a sua história de assombração produzira no ânimo do velho mineiro. Lavrou um tento, disse-lhe Quaresma, julguei que o meu compadre fosse um dos poucos desabusados desta vizinhança.

É dos desabusados que um abuso com minhas histórias, contadas ao meu modo, atalhou o cabra.

Quaresma ponderou-lhe, então, que fazia mal estar cultivando no ânimo dos pobres crédulos, sem proveito algum, as suas fantásticas visões.

Contou-lhe que o Bairro Alto desvalorizou-se e perdeu muito desde quando reservaram uma das suas quadras de terreno para o Campo da Forca, chegando a ser considerado um lugar assombrado, que as suas casas muito isoladas umas das outras e as suas ruas assemelhando carreadores, eram um campo azado para nele figurarem os Saci-Pererês, boitatás e outras inventivas; que os moradores eram todos descendentes dos antigos povoadores, gente ignorante e supersticiosa, que vinham transmitindo de pais a filhos as histórias de lobisomens, cavalos sem cabeça e assim outras minhocarias, para as quais todos tinham boa disposição para ouvir e grande facilidade em acreditar; que era preciso que este estado de coisa tomasse outro molde e, portanto não continuasse com suas práticas inconvenientes.

Se o meu compadre Moreira, disse Quaresma, deu crédito a você, isto advém, tão somente do fato de ter citado maliciosamente os nomes daquelas duas mulheres e também porque ele mora, há muitos anos, neste decanto onde aninhou-se a superstição.

O compadre Moreira, continuou ele, andou muito tempo aborrecido, depois do julgamento no processo Joaquim Ferraz e seu pajem, porque como testemunha, contou só o que viu e ocultou tudo o que ouvira de sua própria mulher.

É o cãs: a negra Rita, mulher de Paulo, pajem de Joaquim Ferraz, viera à vila trazendo consigo uma rapariguinha sua filha, a fim de sujeitá-la ao tratamento de uma das mãos que fora apanhada e ralada pela cevadeira de mandioca.

Ali na vila, a negrinha gritava a noite toda de dores e, para não incomodar a vizinhança, mudaram-na para uma pequena casa no quarteirão debaixo.

Muito bondosa, vendo a Rita tão isolada e só o que a negrinha teria apenas horas de vida, resolveu fazer-lhe companhia durante a noite.

Era já tarde quando, inesperadamente entrou seu marido, com a cabeça rapada, espantado e trêmulo, o que fez a Rita perguntar, exclamando: O que é que há, meu Deus?

Paulo contou então, que no sítio no fim do carreador de fundo no mato, encontrou-se conforme combinado, com Joaquim Ferraz e a sua amante Manoela Maria, mulher de José Ribeiro; que Ferraz, tomando uma tesoura que trouxe consigo, tosquiou rente os cabelos dele, Paulo, e em seguida os da amante; que isto feito, ordenou-lhe que matasse a infeliz mulher e que, diante das súplicas desta, faltou-lhe o ânimo e então Ferraz, com a faca na mão, dissera: “não queres ficar ferro, negro” que mais de medo de morrer na ponta da faca do que o interesse de ficar liberto, dera a pancada fatal e ela tombou; que em seguida procederam o enterramento além do rumo, em terras de Manoel da Cunha, tendo antes disto ajustado a sua cabeleira na cabeça da defunta; que terminada esta tarefa disse Ferraz: “estamos garantidos., se descobrirem esta sepultura encontrarão entre os ossos os cabelos grenhos e hão de presumir que aqui foi enterrado um escravo de Manoel da Cunha.

Contou mais, que na tarde última, fora descoberto o cadáver e, ao saber disso, o seu senhor dissera-lhe que fugisse para bem longe se não queria ser enforcado.

Nesta mesma noite, morreu a negrinha e depois do enterro a Rita, alucinada e em estado febril, desapareceu, sendo encontrada dias depois, morta, perto do córrego de Nha Flor; toda esfarrapada, cheia de arranhaduras pelo corpo e com as mãos apertando o peito.

O que é assombroso em tudo isto, é que durante o dia quando o compadre Moreira andava procurando no mato de Manoel da Cunha madeiras para lavrar, dirigindo-se para um local onde havia ajuntamento de corvos, ali encontrou a sepultura já violada de Manoela Maria. Nesta mesma noite, a sua mulher aqui no Bairro Alto, desempenhando uma missão caritativa ouvia, sem esperar a narrativa que acabo de contar.


Não tendo minha comadre revelado a quem quer que seja o que ouvira senão do marido, este, atendendo aos pedidos dos parentes de Ferraz, limitou-se a contar o que vira. Só mais tarde, depois do julgamento, quando o próprio Ferraz, um verdadeiro maluco gabava-se em liberdade, de suas ferocidades nessa tragédia é que começou a contar o que sabia.

Hugo Capeto


Observações

Mantivemos o texto tal qual foi apresentado no original, fazendo apenas a correção ortográfica que se fazia necessário.

Seria interessante ler também a introdução aos textos de Hugo Capeto, que está localizado nos Mistérios de Piracicaba -1-.





Apêndice


Adufe: tipo de pandeiro quadrado de origem árabe, feito de madeira leve com membranas retesadas de ambos os lados.

Data: terreno retangular medindo de 20 a 22 metros por 40 a 44 metros.


Desabusado: que não tem abusão, que perdeu a ilusão, preconceito ou superstição.


Carreador: diz-se de ou caminho aberto no meio de uma lavoura.


Azado: que é conveniente, oportuno, propício.


Boitatá: mito indígena simbolizado por uma cobra de fogo ou de luz com dois grandes olhos, ou por um touro que lança figi oekas vendas,


Decanto: qualidade ou condição do que é decantável, exaltabilidade.


Grenho: despenteado, desgrenhado

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Mistérios de Piracicaba -1-



A Loca de Pedra



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Explicações


Por todas as avaliações que sejam feitas desta cidade, falando de seu explosivo desenvolvimento do início do século XX, de ter sido considerada com um Atheneu Paulista, por ser fonte geradora de múltiplos fatos dentro do ensino, do trabalho, das artes ou até mesmo lugar de vida de figuras ilustres, por ter se envolvido em revoluções, não muito se falou sobre seus costumes, seu misticismo, suas figuras do dia a dia, de sua habitualidade.

Com o firme propósito de vermos expostas facetas pouco conhecidas, eis que partimos em busca de verdades e/ou fatos dentro destas metas. Talvez alguns sejam pouco saborosos. Outros, o tema mostra-se tão irreal, que é obvio a capacidade de criação fantasiosa de quem redigiu.
Em alguns capítulos a serem abordados, o relatado permanece imerso em uma névoa, onde a realidade mistura-se com a ficção, e perdemos os parâmetros para a exata avaliação. Em outros, é nítido que é um fato é ou ficção.

Alguns dos capítulos mencionados foram escritos sob o pseudônimo de “Hugo Capeto” e publicados no Jornal de Piracicaba na década de 1920 sob o título de “Mistérios de Piracicaba”, que iremos manter. Debalde os esforços feitos, não conseguimos identificar o nome da pessoa que escrevia sob este pseudônimo. Várias hipóteses foram aventadas, mas na ausência de qualquer comprovação, preferimos omitir estes nomes.

A LOCA DE PEDRA

Quando em 1877 o fragor da dinamite estilhaçando rochas e o rumor cavo e profundo dos alviões rasgando a terra, pouco mais longe onde a cidade acaba, para além do Bairro Verde, anunciavam o advento da primeira linha férrea, em Piracicaba, o local onde deveria construir-se a estação da Sorocabana era uma incógnita que comportava múltiplas soluções para os bons moradores desta antiqüíssima Constituição.


Certamente as rodas da via férrea atingiram a margem do ribeirão Piracicamirim e transpondo-o na bifurcação das estradas de Santa Bárbara e Rio das Pedras ou alhures, viriam terminar nas margens do rio Piracicaba, com de Araritaguaba (Porto Feliz) e pelas canoas e balsas que rio acima vinham abicar na Rua do Porto.



Era esta, pelo menos, a solução dada àquela incógnita pelo antigo piracicabano, coronel José F. de Camargo, senhor de largo descortino comercial e grandes latifúndios, na baixada que fronteia o rio e por onde se estendem hoje a Rua Luiz de Queiroz e adjacências.

Então (quem nos conta esta historia é Harun-Al-Raschid, não o califa de Bagdá lendário e brumoso, mas, o outro, visível e palpável, o homem dos mistérios, que os guardas noturnos encapotados e friorentos vêm passar, por noite alta, nos lugares tenebrosos), então o Coronel José Ferraz concebeu o plano de uns vastos armazéns para cargas, com quartos sobressalentes para hospedarias e cômodos para negócios — e no quarteirão remanescente entre as ruas do Salto (R. Cristiano Cleopath) e do Rocio (R. Mns Manoel Francisco Rosa) lentamente foi levantando aquela comprida construção em pedra e ferro.

Mas, a 19 de maio daquele ano a estrada foi aberta ao trafego e a estação, falhando a todas as conjecturas, acabava por erguer se no Bairro Alto, pouco aquém do parque Barão de Serra Negra — e os vastos armazéns da Rua Luiz de Queiroz estacionaram também acima dos alicerces, sendo despedidos os pedreiros espanhóis que iam erguendo aquelas muralhas a dois mil e tantos réis por dia.


Mais de uma década havia decorrido, a hera e o musgo já se estendiam virentes e ovantes sobre a tosca alvenaria rejuntada com cimento, quando o primitivo plano foi modificado e construiu-se e sobradão de meio tijolo, com oito frestas superiores e quatro portas e outras tantas janelas no pavimento inferior, ficando apenas em arcadas obstruídas com tijolos a parte da alvenaria que confina com a Rua do Rocio.

Outro sobrado ergueu-se mais tarde ao lado, as paredes da Rua do Salto foram levantadas e cobertas por um telhado e antes, bem antes do honrado Toretti instalar ali o seu honrado balcão, já o primitivo sobradão pintado do amarelo. Era o cortiço, conhecido pitorescamente pela denominação popular do — Loca de Pedra.


Cortiço de vida noturna intensa pelos seus cubículos virgens de vassoura, onde a poeira negra dos anos decorridos se casa tão magnificamente com o viver anti-higiênico dos moradores, tem passado os vultos mais eminentes do cadastro policial - e à claridade baça das noites enluaradas, sob o rumor estrondoso das águas do Salto, ou nas noites tenebrosas em que o vento Sul fustiga os coqueiros da vargem e levanta em turbilhões a poeira grossa do macadame da rua, muitos dramas sinistros, bastas tragédias sangrentas tiveram por palco o pavimento escuro daqueles cubículos.


O «Prateleira», que atualmente expia numa das prisões da cadeia duas penas por crime de roubo com ferimentos e crime contra a honra iniciou-se na «loca d« pedra», onde o “Totico”, muito antes do conflito que lhe valera um tiro na barriga e vários meses de reclusão à sombra do xadrez, já ensaiava a cabeça contra o ventre dos antagonistas ou movia as pernas num fandango ao som da sanfona fanhosa do «Zé Estanislau»; outro «cabra famoso», lá das bandas de Capivarí, comparsa da «Loca de Pedra», que marca as suas entradas em Piracicaba com alguns pontaços de faca e varias passagens consequentes pelo banquinho dos réus, mas sempre absolvido!


«Rocambole», «Guilhermino», Japonês, épicos varões da faca ou do porrete e tantos outros, cuja nomenclatura encheria tiras e tiras de papel e cujas façanhas enchem a crônica do cortiço, justificando a alcunha que circunda como uma auréola de fastígio — "Loca de Pedra"!...

Se a fauna que a frequenta tem produzido tantos e tais espécimes, que avultam nos prontuários da Delegacia de Policia, não menos interessante é a flora que nele vegeta e também merecia uma descrição sucinta e breve.

Eu desejaria apresentar a todos a tia Tereza, matrona precoce, curtida dia e noite pêlos vapores nauseabundos de uma cachaça ordinaríssima, a Julinha, um tenro botão de quinze anos de idade apenas e também fanado pelo álcool causticante de vastas camoecas , a Libânia Rita louçan e dengosa, um ciúmes vivo para as outras saias e um perigo constante a pairar por sobre os corações do sexo de calças, mas...já o galo cantou pela terceira vez: já o oriente empalidece ao clarão difuso das luzes da madrugada e tudo anuncia que o meu poder diabólico e evocativo é findo.


HUGO CAPETO


Nota

Meus pais sempre se referiam a este local quando passávamos nas cercanias do antigo Jardim da Ponte (hoje ocupado pelo Hotel Beira Rio e área da Biblioteca Municipal), ou quando caminhávamos pela Rua Luiz de Queiróz, ainda quando era criança. E deste tempo remoto, restou o vislumbre de sua base, e que avento a hipótese de ter sido as ruinas do referido local, hoje inexistentes, da loca de pedra...











Alvião: instrumento de ferro constituído de um cabo de madeira, uma lâmina com feitio de enxada, de um lado, e uma ponta semelhante à da picareta, do outro, us. para cavar terra dura, arrancar pedras etc.; enxadão, marraco.

Loca: pequena gruta, furna, lapa.

Camoeca: doença passageira, sem gravidade; achaque, embriaguez.
Fanar: cortar.
Fastígio: ponto ou lugar mais alto, cume, pico.s
Macadame: Processo de revestimento de ruas e estradas que consiste numa mistura de pedras britadas, breu e areia, submetida à forte compressão.

Ovante: triunfante, vitorioso.
Virente: que verdeja, viçoso.

domingo, 6 de fevereiro de 2011




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M A K S ...W E I S E L
EXEMPLO.. DE.. VIDA





Um povo sem passado
É um povo sem futuro



Neste mundo nada é estático. Tudo muda, molda-se, originando outros valores. E os primeiros valores vão sendo relegados a um segundo plano, caindo em desuso e finalmente, são varridos da memória humana por perderem a finalidade essencial pelo que existiram. Acabam sendo totalmente exterminados. É como dizia o poeta, “morrer totalmente que nem o nome subsista na memória de quem quer que seja...”

O fato que desejamos abortar é a fase inicial do desaparecimento de algo, especificamente neste caso, uma das fases do automobilismo em Piracicaba.

Com a introdução dos veículos a explosão, em especial os carros, novos valores foram surgindo e agregados dentro da sociedade. Foi ele elemento de originou destaque dentro das classes mais abastadas, um elemento diferencial entre a nobreza e “os outros”. Também não deixou de representar o status de poder e força nestas fases iniciais.



Se de um lado tinha toda esta representatividade, os homens que o dominavam também viam nele algo que deveria ser aprimorado, lapidado, até que atingisse novos valores.

De um mero veículo com quatro rodas, onde seus ocupantes eram submetidos às intempéries, seu interior foi se aprimorando, atingindo conceitos melhores de conforto e beleza.

De seu motor onde era necessário girar a manivela para colocá-lo em funcionamento, aprimoramentos continuaram a ser feitos, onde hoje simplesmente aperta-se um botão, e seu coração começa a rugir.

De seu início com “gigantesca” capacidade de se fazer seus vinte, trinta quilômetros horários, hoje as velocidades habitualmente atingidas situam-se na escala dos cento e cinquenta a trezentos quilômetros horários. Em carros experimentais, o recorde situa-se acima de 1200 Km/h.
Seu preço antes proibitivo, cada vez mais foi diminuindo, sendo acessível de aquisição por uma grande fatia da população.

Esta ascensão que ocorreu em pouco mais de um século de existência, deve-se muito aqueles inconformados, que não se satisfaziam com o que era habitualmente oferecido, procurando sempre novos limites, almejando sempre novos valores.

Nas primeiras fases do automobilismo existia um certo glamour. Os valores sociais eram outros. E havia uma certa magia que envolvia aos fatos desconhecidos. Com o decorrer do tempo, ela foi esvaindo-se, com o desaparecimento das corridas de rua. A obrigatoriedade do uso dos autódromos, da tecnologia invadindo a capacidade mecânica dos pilotos e seus mecânicos fez sucumbir mais uma fase do automobilismo. Hoje, o que existe é o domínio do computador sobre a máquina. Raras são as competições que possuem ainda um certo glamour, como o rally Dakar, antigo Paris-Dakar.



Se antes as primeiras corridas faziam-se pelas estradas européias, logo ao início do século XX elas foram proibidas, visto ao risco de atropelamentos e mortes que levavam aos que as assistiam.
Esta proibição somente veio a acontecer no Brasil na segunda metade do século XX. Até nesta fase eram aceitas as corridas de rua, dentro das cidades. Não havia profissionalização entre os corredores, somente os novatos e os mais experientes. Os carros eram patrocinados pelas fábricas. Mas havia aqueles que retiravam valores do bolso e iam à luta.




Maks Weisel foi um destes corredores. Abraçou Piracicaba como seu torrão natal, e entre sangue e lágrimas, erigiu o monumento que é sua vida. Destemido, sangrando os próprios bolsos para manter seu carro, foi um dos audazes pilotos ainda desta “fase romântica final” do automobilismo. Enfrentou as célebres corridas de rua não só em Piracicaba, mas em diversas cidades do Brasil. Teve suas glórias e decepções, sucessos, frustrações e angústias. Defendeu o automobilismo competitivo com extrema garra. Agiu tentando estabelecer um autódromo em Piracicaba.



Neste seu depoimento está o condensado de sua vida. É apenas uma breve visão de toda a trilha percorrida por este gigante.



Mais uma vez Piracicaba embala em seus braços um filho adotivo, e esta Noiva da Colina pode jactar-se de ter Maks Weisel entre os de sua prole, assim como muitos outros.



É por isto que orgulhosamente dizemos que ”que bebe água desta cidade sempre acaba voltando, e quem aqui está, invariavelmente colabora para sua grandiosidade como modo de agradecer aos frutos que dela colhe...”






Para ouvir o depoimento de Maks Weisel
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