segunda-feira, 20 de junho de 2011

MISTÉRIOS DE PIRACICABA VII


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PÂNICO DE 1842
I





No Dia 17 de maio de 1842 os sinos das igrejas de Sorocaba tocaram a rebate.



Ateava se extemporâneamente o facho da revolução. Pouco depois reuniam-se a Camara Municipal e o povo, proclamando o coronel Rafael Tobias de Aguiar, como presidente interino da província de São Paulo.



Empossado do cargo, foz o coronel Rafael Tobias a seguinte proclamação que, em texto impresso, está guardada no cartório do Registo Geral desta cidade:



PAULISTAS : Os fidelíssimos sorocabanos, vendo o estado de coacção a que se acha reduzido o nosso Augusto Imperador o Sr. D. Pedro II por esta Oligarquia sedenta de mando e riqueza, acabam de levantar a voz, elegendo-me presidente interino da Província para debelar essa hidra de trinta cabeças, que por mais de uma vez tem levado o Brasil à barda do abismo, e libertar a Província desse Procônsul, que postergando os decretos mais sagrados veio comissionado para reduzi-la ao do mísero Ceará e Paraiba. Fiel aos princípios que hei adotado constantemente na minha carreira publica, não pude hesitar em dedicar mais uma vez as minhas débeis forças na sustentação do Trono Constitucional.




PAULISTA! O vosso patriotismo já deu o primeiro passo precedendo e seguindo os vossos representantes quando fieis interpretes de vossos sentimentos, clamaram contra essas leis que cerceando as prerrogativas da Coroa e as liberdades publicas, deitaram por terra a Constituição: o vosso valor e firmeza farão o resto. Mostremos ao mundo inteiro que as palmas colhidas nas campinas do Rio da Prata não podem definhar na do Ipiranga.



Os descendentes do ilustre Amador Bueno sabem defender os seus direitos a par da fidelidade devem ao Trono. União e a Pátria será salva

Viva a Nossa Santa Religião
Viva S M, o Imperador
Viva a Constituição
Rafael Tobias de Aguiar

Os revoltosos expediram imediatamente emissários para as povoações vizinhas com o fim de obterem o reconhecimento do seu governo. Veio a Piracicaba o dr. João Viegas Forte Muniz, um dos chefes revolucionários e aqui entendeu-se com o chefe liberal, o vigário colado Pé. Manoel José de França e por delegação de poderes o fez comandante militar desta praça.



O padre França, de pronto, pôs em ação toda a sua energia e influência, e logo daqui marcharam, com presteza, uma força de guardas nacionais para Itu e outra de guardas policiais para a Venda Grande, próximo a Campinas.



Convém aqui mencionar que o comandante militar de Itu, Tristão de Abreu Rangel, referindo-se ao pessoal piracicabano ali chegado para reforçar a coluna Libertadora, disse, em ofício dirigido no Presidente interino: Ao chegar a Coluna Libertadora no lugar denominado Pírajussara, aquém do ribeirão dos Pinheiros próximo a São Paulo, o entusiasmo dos rebeldes se arrefeceu, devido á noticia alarmante de estar aquela cidade já guarnecida por batalhões de caçadores e fuzileiros do exército nacional, comandados pelo Barão de Caxias, vindos a toda-pressa do Rio de Janeiro, a requisição do Barão de Monte Alegre, presidente da província.



A Coluna Libertadora não tinha a mínima organização militar e estava pessimamente armada e municiada.



A seguinte ocorrência, seguramente muito aumentada pelo relator, um partidário doa legalistas, evidencia o gráu de preparo dos rebeldes, dias antes de chegarem a Pirajussara.



Tinha sido confiado ao tenente Corrêa um grupo de matutos para ministrar-lhes o exercício de marcha, mas estes não acertaram os passos, confundindo o pé direito com o esquedo, ao receber as ordens.



Lembrou-se então o tenente de atar uma cinta de palha na perna direita dos novos soldados e outra de capim na esquerda: e assim começava o exercício :



—Passo à frente, pé de palha... marcha... 'pé de 'capim... pé de palha... um... dois... um... dois... pé de capim... pé de palha... assim não falha, até o fim... alto.



O major Francisco Galvão de Barros França, comandante da Coluna Libertadora, foi um valente soldado nas campanhas ao sul. Corajoso a honrado entendeu, todavia, que não devia sacrificar o seu pessoal, combatendo contra a flor do exercito brasileiro, aguerrido pelas lutas renhidas, travadas no norte do Império.



Diante da perspectiva de uma carnificina inútil determinou a retirada para Barueri. A essa retirada seguiu-se a debandada e, depois, o salve-se quem puder.



O Barão de Caxias, general em chefe do Exercito Pacificador, aquartelou-se em Sorocaba em 21 de junho de 1842, sem que tivesse tido um só encontro com a Columna Libertadora, e com a sua aproximação, daquela cidade desapareceram os chefes do movimento revolucionário, a não ser o senador padre Feijó, doente e quase incapaz de movimentar-se.



O próprio Barão de Caxias foi á casa onde se achava hospedado esse grande brasileiro lá disse-lhe com acatamento : "só o dever de soldado me impõe o doloroso dever de vir prender ao senador Feijó, um dos chefes do movimento revoltoso. Convido-o a acompanhar-me.



De Sorocaba ordenou Caxias que o capitão Butiá fosse com um pelotão do execito á fabrica de ferro do Ipanema e de lá à Villa da Constituição, devendo chegar neste, ultimo ponto, de surpresa, pela estrada-picadão, que faz parte da fazenda Sobrado de Botucatú, a fim de prender o padre França, o Gordo e assim, outros liberais implicados na revolução.




O capitão Butiá encontrou homiziados na fabrica de ferro do Ipanema muitos dos revoltosos e prendeu-os, entre eles o porto-feliciense capitão José Rodrigues Leite (o Zuza) um dos mais inteligentes, influentes e operosos chefes dos revolucionários, o avô do nosso distinto conterrâneo e ilustrado médico dr. José Rodrigues de Almeida, que, por sinal, tem acompanhado com interesse e feito, entre nós, severas criticas aos “Mysterios de Piracicaba».

Do Ipanema o capitão Butiá procurou a confluência dos rios Tietê e Piracicaba e atravessou aquele rio no lugar denominado Barreiro Rico, onde passava a estrada picadão que vinha à Constituição.



A travessia do rio foi feita num dia chuvoso o tendo de continuar a caminhada em um sertão de matas brutas, continuando as pancadas fortes de chuva, o capitão Butiá teve que fazer alto e aquartelou-se no sitio que Pedro Ferraz Castanho, ali estava abrindo.



Pedro Ferraz Castanho, um dos influentes do partido liberal de Piracicaba e avô do sr. Henrique Brasiliense, ilustrado lente da Escola Agrícola e apreciado colaborador deste jornal, depois da noticia da debandada da Coluna Libertadora, preferiu estacionar, por algum tempo, no seu novo sitio do Barreiro Rico, em vez de sua aprazível e boa fazenda no Rio das Pedras.



Não imaginara que a estratégia do Barão de. Caxias conceberia o plano de avançar para a Villa da Constituição, procurando a confluência dos dois rios e daí distribuir forças, parte delas subindo em canoas para cercar os fugitivos, em demanda dos sertões de rio abaixo e as restantes marchando por terra em péssima estrada.



Não contava com a visita de tantos hóspedes e, por isso, naquele dia chuvoso, estava com os seus escravos africanos dentro do paiol no afân de empilhar as espigas de milho. Da curta palestra que entreteve com o Capitão Buitá com Castanho, compreende-se que aquele tinha diante de si um homem sincero, ordeiroe trabalhador, no entanto dispôz do sítio de Castanhocomo se fora do governo, arrecadando todos os animais de sela e de cargueiros, utilizando-se dos víverese ordenando que ninguém se retirasse daquela propriedade agrícola sem ordens.







A despeito desta proibição, logrou Castanho avisar o seu vizinho Francisco Idalgo, para que mandasse um próprio, à toda brida, à vila afim de noticiar aos piracicabanos a presença dos forças de Caxias naquele lado e recomendar que não descessem os fugitivos o rio, visto como subia per ele um batalhão com tropas.



A notícia trazida pelo portador de Idalgo produziu um verdadeiro pânico era Piracicaba, como veremos no capitulo seguinte.







PÂNICO DE 1842




II




Os dirigente dos rebeldes piracicabanos na revolução de 1842, como já foi dito no capitulo anterior, eram: o vigário colado padre Manoel José de França, o senador Vergueiro e o Gordo; estes dois últimos tinham as suas propriedades agrícolas em Limeira e o ultimo veio a ser, mais tarde, sogro do coronel Carlos Botelho e dos drs. Moraes Barros.

Logo depois da noticia da fuga dos chefes revoltosos em Sorocaba, o padre França retirou-se para Araraquara, o senador Vergueiro foi com outros chefes políticos da Capivari jogar o solo na fazenda de Jucá Fernando, nas divisas entre Capivari e Piracicaba, permanecendo aqui apenas o Gordo.



Gordo, durante o primeiro mês da revolução, tornou-se um infatigável, percorrendo a zona de Limeira, Piracicaba e Capivari e instigando os liberais a auxiliarem o mais possível a Coluna Libertadora.



Usava, porém, de uma linguagem desbragada e inconveniente contra todos os chefes da legalidade. Tratava-os de "cascudos, "corcundas", e "absolutistas" e quando se referia ao Barão de Monte Alegre, presidente da província, e grande proprietário de engenhos de açúcar em Piracicaba, chamava-o de ex-presidente BAHIA ou simplesmente —o "bahiano”.



Com a noticia da aproximação do capitão Butiá, Gordo retirou-se para a grande chácara do Enxofre, porém ali demorou se apenas dois ou três dias, por não poder suportar os enxames de pernilongos no rancho do canavial, onde se homisiara e porque recebera a noticia inteiramente falsa que Castanho e Idalgo tinham sido presos e vinham algemados e a pé dentro de um quadrado de "periquitos" — nome esse que davam aos soldados do exercito, por causa da farda verde que usavam.



Gordo entendeu que seria preferível esconder-se, e ser preso na própria casa do chefe ''cascudo” major António Fiusa de Almeida, do que ali no canavial.



Valeu-se, para isso, do seguinte expediente, que surtiu efeito por ser baixo e gordo: vestiu-se com roupa grossa de mulher, pintou de preto o rosto e as mãos, pôs um balaio na cabeça, partiu para a casa de Fiusa e ali, penetrando corredor adentro, ao avistar dona Rita Fiusa assentada na rede da varanda, deu o “louvado», tal como faziam as escravas.



Dona Rita logo que reconheceu.



Gordo, perguntou-lhe como é que se apresentava, nesta ocasião tão fora de propósito, na casa de um inimigo político, que, aquelas horas, com outros o procuravam para prender; ao que respondeu Gordo que vinha a procura de guarida e se por acaso naquela casa fosse preso, tinha a certeza que não seria maltratado pelos soldados.



Dona Rita, paulista egrégia, aconselhou a Gordo que se ocultasse no pavimento térreo de sua casa e mesmo tempo recomendou às suas escravas que não denunciassem a vinda desse hóspede.



Ao chegar Fiusa, dona Rita fez-lhe ciente da resolução que tomara em sua ausência e ponderou que competia a ele decidir o que entendesse ser mais acertado.




Fiusa de Almeida não só aprovou o procedimento de esposa como ainda acrescentou: o que vai acontecer é que temos de dar-lhe asilo até que venha a anistia.



Esse rasgo de generosidade hospitaleira, da família paulista, não é o único caso registrado durante a revolução- fatos quase que idênticos se deram em Campinas, Jundiaí e Itú.




No dia seguinte à acolhida dada a Gordo, o capitão Butiá visitava a Fiusa, em casa deste, e iniciou a sua palestra lamentando o fato de ainda não ter podido prender Gordo. É a essa «boava», dizia ele , que eu quero agarrar e mostrar a esse dêsbriado o quanto vale estar apoiando o Rafael Tobias, esse desenfreado inimigo de todos que não são paulistas" !




Gordo, debaixo da sala de visitas e em um quarto com pouca altura do chão, arranhava o soalho debaixo da cadeira em que estava asssentado Fiusa, cada vez que Buitá citava o seu nome, indicando, naturalmente, que estava ouvindo o que diziam, que estava garantido, ou que tinha chiste a bravata militar.




Os legalistas ou «cascudos» de Piracicaba, que estiveram cabisbaixos nos primeiros dias do movimento revolucionário, com a aproximação do pelotão do exército, comandado pelo capitão Butiá, assentaram de tirar a sua desforra, amedrontando os adeptos da revolução.
E, realmente despicaram-se dos doestos e troças recebidos.




O capitão João Francisco do Oliveira Leme, homem de bastante trato social, que se exprimia bem e que muito blasonou no inicio da revolução, agora deixou-se apanhar pelo pânico de um modo lamentável. Ao receber a notícia trazida pelo portador de Idalgo, escreveu uma carta ao seu compadre António Florencio da Silveira, no bairro do Rio das Pedras pedindo condução e se possível viesse ele mesmo buscá-lo, pois, sentia-se abatido e receava faltar-lhe animo para fazer a caminhada sozinho.




No dia seguinte António Florencio encontrou a porta da casa do capitão João Francisco cerrada e foi descobri-lo no quintal, junto a uma toiça de bananeira, pálido e tremulo, em virtude de ter acreditado na balela da que o seu bom e velho amigo Pedro Ferraz Castanho vinha algemado e escoltado pelos «periquitos».




Para maior efeito do pânico os cascudos aconselhavam aos liberais que deixassem a vila quanto antes, e fossem para sítios diversos afim de não serem presos e a outros menos timoratos que desejavam informar ao capitão Butiá que a debandada Piracicaba era completa — não havendo um só rebelde para semente e que tal informação faria com que a permanência desse oficial na Vila fosse de curta duração, poupando a população de estar suportando por muito tempo os soldados desalmados das tropas de linha. Levado por essa primeira injunção, entre outros, Caetano da Cunha Caldeira deliberou deixar a Vila o foi para o seu sito, além do Congonhal.




Ao se aproximar desse ribeirão começou a ouvir gritos de gente que o seguia cada vez mais de perto; desviou então a sua cavalgadura para um carreador já abandonado, porém logo adiante encontrou um terreno alagadiço e com as estivas já apodrecidas. Tratou então de transpô-lo, puxando o animal; porém, logo que deu os primeiros passos uma das estivas cedeu e ficou ele com um dos pés atolado e ao sacá-lo fora descalçou se lhe a bota do pé.




Sem perda de tempo deixou ficar a bota, montou de novo e voltou o animal a toda pressa para o caminho que tinha deixado.




O pajem, um africano, que observara ter Caldeira deixado um pé das botas, se apressou em apanhá-lo, o que fez e de galope foi ao alcance do seu senhor.




Avistando-o gritou:bota, sinhô... bota, sinhô...




Cunha Caldeira, julgando que vinham perto os seus perseguidores, deu rédeas ao seu animal e só muito depois, quando o africano repetiu com insistência: pare, sinhô...bota tá aí... bota tá aí...é que ele sofreou seu animal...




Foi curta a estada do capitão Butiá na Vila da Constituição, que o povo teimava em chamar de Piracicaba, e aqui não foi realizada qualquer prisão, constando apenas que houve busca e apreensão de cartas e documentos comprometedores em casa do vigário padre França.




Com a retirada do capitão Butiá terminou o pânico de 42.




HUGO CAPETO






Glossário




Oligarquia:-
regime político em que o poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas, pertencentes ao mesmo partido, classe ou família.

Timorato.
que tem temor, que tem medo de errar

Homiziar
Criar inimizade(s); inimizar, indispor, malquistar



segunda-feira, 30 de maio de 2011

Mistérios de Piracicaba -6-


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O DEGREDO DE MARIA FLORA]
O DEGREDO DE MARIA FLORA



I
Certa noite em que me pareceu deserta a casa de Harum Al-Raschid entendi de fazer por minha conta, uma reportagem sobre o homem misterioso que vem clareando o passado obscuro de Piracicaba, com as crônicas suculentas dos fatos narrados neste “Jornal”.

Penetrei no jardim ermo e abandonado aos surtos de vegetação pomposa que sombreia aquela vivenda, transpus a soleira da porta, calcando o botão mágico meu conhecido e entrei...


A reminiscência daquele encontro com a sepultura abandonada, de onde eu vira com pavor cair aquele defunto, que me embargara os passos da fuga desabalada em que eu corria, e também as ilhargas doloridas e as contusões arroxeadas que ainda marcavam meu corpo, quando foi a queda que levei naquele subterrâneo escuro, tornaram-me temeroso e eu levava uma lanterna elétrica na algibeira, além de fósforos e um maço de velas, por precaução.


Convém dizer que Harum não tem água canalizada em casa, nem instalações elétricas, servindo-se apenas de um lampião belga sobre a mesa da sala e uma lanterna de mineiro, que ele transporta de um para outro compartimento.

Porque a água canalizada e a instalação elétrica importam em ter o nome registrado como consumidor, dos livros da Hidráulica e da Empresa Elétrica de Piracicaba, e estes livros SAP verdadeiros prontuários, onde o Sr. Dr. Djalma Goulart poderá descobrir não só a residência, mas também a identidade de quase o total de moradores desta cidade populosa.

Restava ao imposto predial, por onde a ilustríssima senhora Câmara Municipal poder denunciar ao mesmo Sr. Dr. delegado a situação exata do prédio e o nome do morador, as Harum Al Rashchid tomou a precaução de estabelecer os seus penates num dos centenares de prédios interditados pelo eminente Sr. Dr. Valentim Browne e assim, protegido pêlos éditos inefáveis da Inspetoria de Higiene, sem registro nos livros denunciadores dos Srs. Fonseca Rodrigues e Américo do Santos, o meu misterioso amigo vai evocando as sombras dos passados acontecimentos locais.

Entrei, pois. Sobre a mesa da sala o referido lampião belga, solitário e aceso, espargia uma claridade tristonha e doentia, falta talvez do querosene ou talvez da torcida já gasta e requeimada); papeis amarelecidos pelo tempo, espalhados aqui e além, o Almanaque de Piracicaba de há vinte anos atrás; volumes encadernados em couro vetusto e roído pelas traças irreverentes dos armários e, por sobre aquilo tudo, a caveira... o horripilante prendedor de papeis a rir eternamente com a dentadura exposta e falha, a olhar fixamente com as orbitas vazias e escuras, para uni pergaminho encarquilhado...

Peguei no pergaminho, todo garatujado numa letra amiga e esmaecida, numa ortografia contemporânea dos clássicos quinhentistas, onde predominavam as hastes eriçadas dos hh e dos yy subscrevendo toda aquela floresta de letras com hastes eriçadas uma assinatura respeitável —D. Luiz António de Souza!

Mas, por Deus! Segundo os meus estudos de historia pátria e o Quadro Histórico da Província de São Paulo até 1822, pelo brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira, pai do inesquecível. Dr. Brasílio Machado, que foi promotor público nesta comarca, aquela assinatura era do morgado de Matheus, D. Luiz Antônio de Souza, que foi capitão general e governador da capitania de São Paulo desde 1765 até 1775, data em que foi substituído no governo da capitania por Martim Lopes.
Então o pergaminho encarquilhado que eu examinava, tinha mais de cento e cinqüenta anos, quase dois séculos de duração?


Então aquela assinatura vetusta e respeitável andava para ali, jogada sobre a mesa de um antiquário, sob o olhar fixo e indiferente das orbitas negras de uma caveira?... Andava sim, — e mão ciumenta arrebatou-me o pergaminho, após o ranger sinistro de uma porta que eu não vira abrir-se.

Harum estava diante de mim e tendo arrebatado o pergaminho contemplava, com amoroso carinho, as garatujas escritas e a assinatura solene do célebre morgado de Matheus, D. Luiz Antonio de Sousa.

Este documento, disse ele, é quase contemporâneo da fundação de Piracicaba, quando ela começou como presídio, ali na margem direita do rio onde hoje se ergue o Engenho Central


Como sabe o meu amigo, o Dr. Joaquim da Silveira Mello há muito tempo que trocou os cálculos de logaritmos, os binômios e polinômios, e extração de raízes cúbicas, azimutais e tudo mais da engenharia, pelas autuações no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, formais de partilha c contas do Regimento de Custos, isto com gravame e perda sensível para a historia pátria, da qual é ilustrado cultor. Pois, o Dr. ]oaquim da Silveira Mello, que é por si um arquivo vivo das crônicas piracicabanas, ainda tem á sua disposição o arquivo do primeiro tabelionato e outro arquivo particular, de onde eu tirei este pergaminho com a assinatura do morgado de Matheus.

Quando li seu conteúdo vi que era um documento inestimável para a publicidade dos “Mistérios de Piracicaba”, e com o faro arqueológico, que nunca me abandona, em se tratando de escavações históricas, foi reconstruído o drama e as cenas que deram lugar à intervenção do capitão geral governador da capitania na vida local de Piracicaba.

E comodamente refestelado na fofa poltrona da sala de Harum Al Raschid, sob a claridade mortiça do lampião belga, dispuz-me a ouvir um mistério relatado por tão ínclito narrador.

Saiba meu amigo que Piracicaba deveu a sua existência de arraial e depois povoação, vila, etc. a uma razão puramente econômica e estratégica e como toda história deve ter uma epígrafe, os fatos que vou narrar podem bem ter o título “O Degredo de dona Maria Flora.


II
O morgado de Matheus, D. Luiz António de Souza, sendo nomeado governador da capitania de São Paulo em 1765, teve empenho em executar 03 planos os alvitres da Marquez de Pombal, os quais consistiam era estender o domínio português para o sul e oeste do Brasil.

Depois de entender-se com o governo do Rio de Janeiro e de receber dali os recursos para as explorações do Tibagy e para ampliar possessões portuguesas por esta então capitania de São Paulo, D. Luís António de Souza preparou uma primeira expedição de 650 homens, em 21 canoas e 6 batelões que partiu de Porto Feliz em 1769, com o pretexto de explorar e povoar os sertões do rio Ivahy, na confluência com o Rio Paraná, mas com o intuito real de ir mais além e garantir o território litigioso entre Portugal e a Espanha.

E fez seguir em 1770 outra expedição de duas companhias de aventureiros que foi juntar-se à primeira na barra do lvahy e ambas atravessaram o Rio Paraná, navegando para o Iguatemi, onde em terreno fronteiro ao Paraguai deram começo a uma colônia, depois ali edificaram o “Forte Prazeres”.

Essa colônia de Iguatemi chegou a conter 1.227 povoadores, feitos sair por diversas vezes de São Paulo e, segundo afirma o saudoso diretor do Arquivo de S. Paulo, Dr. António de Toledo Pizza, era seus - «apontamentos históricos»: custou aos paulistas os maiores sofrimentos e privações, consumindo centenares de vidas.

Em todas as povoações da capitania eram recrutados indivíduo e famílias, por ordem de D. Luís Antônio de Souza, os quais deviam povoar aquela colônia, mas ali pereciam de febres e doenças oriundas dos terrenos paludosos do Iguatemi, basta dizer que em 1773, três anos depois da fundação do Presídio de Iguatemi, verificou-se um recenseamento que ainda, incluindo os nascimentos havidos, a população estava reduzida a 556 indivíduos de 1227 que eram no tempo da fundação.

Afinal a colônia foi abandonada então apressadamente que nem retiraram a artilharia e o material do “Forte Prazeres”, dos quais se apropriaram os paraguaios e o arrasaram em 1777.
Enquanto, porém não era conhecido este recenseamento, D. Luís Antônio de Souza tinha tido interesse em abrir uma estrada por terra até aquela colônia, e sendo informado da existência de um picadão dos antigos, que saia do salto do Rio Piracicaba ia ter ao sertão, sabendo que o rio fazia no local uma grande volta arredondada, circulando extensos terrenos cobertos de grandes madeiras, próprio para a construção de canoas, cuja varação para o rio era fácil, resolveu fundar ali uma povoação.

Fundou realmente um presídio, com o fim de aviventar o picadão antigo, de fabricar canoas e de sujeitar os recrutados nestes serviços até a época das monções para a colônia de Iguatemi, pôs na margem direita do Rio Piracicaba um quartel com o destacamento de milícias, um comandante e a férrea disciplina de uma praça de guerra, temperada por uma igreja ou capela, cujos alicerces derrocados ainda podem ser vistos no Engenho Central.

Com os abarracamentos ou arraial daquele lado, logo começaram a se abrir pequenos sítios na margem esquerda, iniciando-se a cultura de cereais, criação de porcos, fabricação de rapaduras, produtos enfim, que achavam franca saída, no fornecimento da colônia de Iguatemi.
Estes sitiantes e moradores da margem esquerda do rio Piracicaba não estavam sujeitos da administração do capitão povoador e nem do comandante da força de milícia, e sobre eles D. Luís Antônio de Sousa havia feito aos primeiros recomendação especial para que fossem tratados com toda a brandura e sem vexação.

Ao amparo dessas regalias, sob a proteção da força de milícia. Os adventícios foram adquirindo terras nesta sesmaria, povoando-se a margem esquerda, e entre estes adventícios aconteceu-se estabelecer-se nas adjacências no atual córrego de “Nha Flor” um jovem casal, originário de Jundiaí, e de onde havia imigrado, para furtar-se às impertinências do respectivo capitão mor.
Esse casal dispunha de recursos pecuniários e abriu lavoura, que logo prosperou, mas, falecendo o marido, a viúva dona Maria Flora continuou a labutar com tamanho proveito nas terras que em pouco aumentou a pecúnia; seu sítio sendo limitado por um córrego começaram os visinhos a designar as terras e vivenda da viúva por córrego da “Nha Fiora”, depois por corruptela” Nha Flor”. Como atualmente o conhecemos.

Enquanto administrava com uma grande disposição varonil lavouras e gado, dona Maria Flora não descurava os cuidados com a alma, e todos os domingos ia ouvir missa, na capela do arraial, que era pequeno e por isto tinha a frente em aberto, prolongada por um vasto telheiro, a fim de conter os fiéis.

Dona Flora era moça bonita e mais realçava a sua boniteza o donaire com que ela montava (a maneira dos homens e ao uso daquele tempo em que o silhão era desconhecido) num cavalo branco, fogoso, que controlava e nutria, ao contato das lindas esporinhas de prata, que ornavam os altos borzeguins da bela amazona, e caracolava com risco de derrubar um cachorrinho, alvo também e felpudo, que o nobre animal conduzia na garupa.

As leitoras riem-se? Pois Rugendas, que foi pintor contemporâneo daqueles costumes, deixou-nos vários desenhos representando o passeio das damas no Rio de Janeiro e era assim que passeavam as nossas tetravós elegantes – levando um moleque com um balaio cheio de objetos de toucador e bugigangas, um papagaio ou uma arara, ou um cachorrinho de estimação, além de crioulinhos, almofadas e mucamas.

Isto acontecia, segundo o testemunho de Rugendas nas ruas de Rio de Janeiro, que já era uma metrópole naquele tempo. Porque pois, D. Flora em Piracicaba não poderia levar na garupa do fogoso cavalo branco, um cachorrinho branco e felpudo, como se usava no Rio?

Aos domingos era certo ver (e quanto m0oço via e suspirava!) D. Maria Flor a cavalo, com um pajem atrás, vadear o Rio Piracicaba, num local que dava vau no tempo da vazante logo acima do ribeirão do Enxofre e dirigir-se para os lados da Igreja a fim de ouvir a missa conventuo-papal (deixem passar o neologismo, porque como já ficou escrito, a Igreja ou capela era em parte edificada e em parte prolongada por um simples telheiro).
Era o comandante da milícia no arraial presídio de Piracicaba um mocetão bem parecido, capaz de virar a cabecinha estouvada de muitas moças solteiras, quanto mais o coração vazio de viúvas, e esse comandante Carlos Bartolomeu de Arruda rendeu-se, passou-se com armas e bagagens para a inimiga.

Chegada ao pátio D. Maria Flora entregava a rédea de seu lindo corcel ao pajem e dirigia-se para os lados da casa do padre, onde já a esperava Carlos Bartolomeu de Arruda, para juntos entrarem na capela. Era esta dividida no meio da nave por um peitoril de balaustres toscos, separando as hierarquias; a frente do altar mor as damas e donzelas do arraial, atrás os homens, as pessoas gradas, capitão, povoador, o comandante; mais além no telheiro, o povaréu.

A amizade crescente e recíproca do jovem oficial pela jovem viúva despertava ciúmes no arraial, e embora procedessem ambos com muita circunspecção e decência, as mulheres não toleravam que D. Flora escolhesse sempre para ajoelhar-se ao lado de um balaústre, nem os moços sofriam que Carlos Bartolomeu se ajoelhasse sempre ao lado dela, separados apenasmente pelo mesmo balaústre.

Não faltavam línguas alcoviteiras nem cochilos das devotas para insinuarem que eles faltavam com a devoção, durante o ritual da missa e nem mesmo respeitavam a presença do capitão povoador, num namoro escandaloso.

Num domingo, durante e depois da missa, correu um alvoroço porque ao começarem os Evangelhos, D. Maria Flora assustada soltou um ai... meio abafado e logo reprimido, mas bastante perceptível na parte da nave reservada para as mulheres. O coroinha que servia de sacristão ia mudar o missal para a direita do celebrante e atraído pelo gritinho, olhou e viu os dois dedos do comandante premendo levemente o braço polpudo e feminino, mas duas velhas beatas (que poderia fiar-se nesta espécie de gente?) estavam mais próximas, logo sussurraram num mexerico venenoso, por toda a igreja e depois propalaram pelo arraial, que Carlos Bartolomeu havia dado um beliscão muito mais indiscreto.


III
Eis de ver como o brinco inocente de namorados, envenenado pela língua viperina das velhas beatas e exagerado pela ciumeira azeda dos rivais, transformou-se logo em arma de perseguição política e como a política, barregã sem entranhas, horrendamente fez recair o peso injusto de um desterro iníquo, em vez de no culpado, em uma viúva frágil como era dona Maria Flora.

O beliscão muito mais indiscreto no modo de ver das beatas correu a igreja, atravessou o telheiro e esparramou-se pelo arraial, e enquanto dona Flora, inocente e incauta transpunha o terrapleno do átrio, com as esporinhas de prata tinindo e ia cavalgar o corcel branco para regressar ao sítio, reuniram-se os maiores como no conselho de guerra, para julgar o caso.


O capitão povoador não apreciava o comandante Carlos Bartolomeu de Arruda, era uma malquerença gratuita, não apoiada em qualquer fato desabonasse aquele moço, quer nas suas funções que no seu trato espetacular, mas, levado por esse sentimento menos nobre, resolveu fazer uma acusação tremenda contra o comandante, ao capitão-mor de Itu, cuja jurisdição e alçada se estendiam até Piracicaba.


Era esse capitão-mor um homem inteligente e letrado, especialmente no latim, em que escrevia epigramas e sátiras com a mesma facilidade com que manejava o vernáculo e era também excelente absolutista em extremo.


Carlos Bartolomeu de Arruda era sem parente e protegido, o que não impeliria o excelente regedor de removê-lo deste comando, mas o povo de Piracicaba, muito afeiçoado a Carlos Bartholomeu, em quem reconhecia esplêndidos predicados, logo representou ao capitão mor de Itu, insistindo pela permanência do comandante e o rigor do bastão de regedor recaiu em dona Maria Flora.


Sob o pretexto de que o caso melhormente seria resolvido com a presença de dona Maria Flora, foi a viúva chamada pelo capitão mor a Itu e ali esperou dias e semanas pela solução do incidente; entretanto aquele chamado atencioso ocultara uma ordem de degredo, do despótico capitão-mor, para longe de suas lavouras, para longe de suas missas de domingo, para longe enfim do comandante culpado mas absolvido, que a fizera gritar de susto, com uma beliscadura ligeira no braço polpudo e roliço.


Política de campanário, que já naqueles tempos coloniais alteava as sete cabeças de hidra hedionda e nefasta. Política pessoal, que nascida de uma antipatia gratuita, mas fortalecida por uma vontade ferrenha, prepotente e arbitrária, intervinha na vida privada de dois entes bem quistos e revolucionava um arraial, que só precisava de paz e braços para prepara! Dona Maria Flora era viúva e moça, o comandante Carlos Bartholomeu de Arruda era solteiro e livre; que muito era que se namorassem aos domingos, na igreja, se eles podiam casar-se e casados podiam com uma prole fecunda dar braços às lavouras incipientes e servidores possíveis da Pátria, numa época de turbulações como aquela?

Carlos Bartholomeu não resistiu por muito tempo às injunções da política prepotente do capitão-povoador, e foi constrangido a deixar o comando da força e deixar Piracicaba, a despeito dos empenhos dos habitantes povoadores que lhe queriam bem,
Mas, voltou tempos depois como posto de sargento-mor e já casado; tornou-se proprietário da sesmaria de Bom Jardim do Salto, que se dilatava entre o Itapeva até a fazenda Monte Alegre e onde faleceu com a idade provecta, ali pelo ano de 1815, sendo enterrado na nova igreja matiz, grades a dentro.


Debalde tentou Carlos Bartholomeu esquecer a antiga amizade com a dona Maria Flora e o que conseguiram as velhas beatas contra o testemunho do coroinha sacristão, e a política do capelão povoador foi que ele, embora casado com outra e sendo bom chefe de família, ligou-se com a viúva e constituiu duas famílias, cujos descendentes espalharam-se pelas então vilas de Curuçá, São João do Rio Claro e Araraquara.


E dona Maria Flora? E o pergaminho assinado por D. Luis Antonio de Souza? perguntei eu vendo que com aquela apóstrofe contra a política Harum Al Raschid havia salteado o curso de sua narração.

Dona Maria Flora cansou de esperar em Itu uma solução que não pedira nem provocara, sempre que se apresentava oportunidade para regressar a Piracicaba, (pois as estradas eram difíceis e as tropas e viajantes eram periódicas), o capitão mor a retinha sob qualquer pretexto, até que ela percebeu o degredo a que fora condenada.


Então, readquirindo aquela energia varonil, que a guiava na administração de suas lavouras, a jovem viúva lançou as vistas para o capitão geral e governador da capitania de São Paulo, D. Luis Antonio de Sousa.


Fez-lhe ver, num ofício repassado de circunstâncias, a prepotência do capitão-mor de tu, que a retinha em degredo por culpa que cometera, com prejuízo para sua lavoura de cereais e cana, e criação de gado, que abastecia a colônia de Iguatemi.


Reclamou contra o prejuízo de suas plantações, longe dos cuidados e da administração dela e pôs em evidência os perigos que adviriam para o povoamento e colonização da capitania, se os colonos e povoadores pudessem ser retirados de suas terras pelos caprichos e prepotências dos capitães mores (pudera, pois ela e o defunto marido já haviam imigrado de Jundiaí para fugir as impertinências do respectivo capitão mor). Com uma tal petição está visto que governador da capitania de São Paulo havia de tomar providências imediatas e estas consistiram de pedir informações ao capitão-mor de Itu e ao capitão povoador deste arraial, por qual motivo mantinham longe de suas terças e haveres uma dona prestimosa, que honradamente ia lavrando terras duma sesmaria perdida nas margens do Rio Piracicaba,

As comunicações entre São Paulo e Itu eram tão difíceis quanto demoradas e assim, entre a troca de ofícios e de informações ainda decorrem um tempo vasto, porém D. Maria Flora afinal foi recambiada para Piracicaba, por ordem indiscutível do governador da capitania.


Harum estendeu-me então o pergaminho que escamoteara do arquivo particular do Dr. Joaquim de Silveira Mello e entre variadas instruções de caratê administrativo, aos respectivos capitães, eu li este despacho fulminante, que revogava o degredo:


”Volte dona Maria Flora para Piracicaba: aly nã consilt que Carlos visite Flora em caza de esta e nen que esta visite o comandante em caza de este, e além disso que nã veja nem na egreja, nem no arrayal, nem na lavoura e se nã encontrem em parte algua- te mesmo na capoeyra”.

Hugo Capeto


Glossário
Morgado: primogênito
Penates: deuses do lar entre os romanos e etruscos, casa materna (fg)
Silhão: cela grande com estribo só de um lado
Vetusto: de idade muito avançada, velho
Córrego de Nha Flor: seu local provavelmente era na altura da atual rua São Josécom o Rio Piracicaba

domingo, 8 de maio de 2011

Mistérios de Piracicaba -5-

O Beija-flor


(continuidade da Loca de Pedra)




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Era por uma destas noites horríveis de Piracicaba, em que o despenhar das aguas no Salto tem um gemido cavernoso e trágico; em que o trilar dos apitos da guarda noturna, de quarto em quarto d'hora, é como um pio de coruja agourenta, pavoroso e lúgubre; em que o assobio do vento sul nas frinchas e desvãos da «loca de pedra» é sinistro e tétrico; em que o ar pesado, na atmosfera funérea tem um cheiro esquisito de sangue coagulado e frio.




Era a hora em que no alto dos postes dispersos, as lâmpadas da iluminação publica parecem tremer de medo das trevas envolventes e os densos bulcões de nuvens viajam no espaço fuliginoso e negro como a asa fatídica de um corvo crocitante e negro. Solitário e ébrio, pela solidão da rua do Salto, ia descendo pávido e cambaleante o vulto negro do Salustiano Claudino, um ex-palhaço de circo de cavalinhos que a falência da companhia e os embates de uma sorte madrasta haviam largado nesta cidade e aqui vivia, temperando panelas como cozinheiro medíocre e divertindo a noite, com os seus ditos alegres, a Mariquinha «tostão», a Maria «porcadeiro» e as outras flores da «loca de pedra» famigerada.










Era engraçado e meigo o Salustiano Claudino e quanto mais bebia mais alegre e brandamente sorria, conciliador o pacífico, nunca se enredando em brigas, desmanchando muitas vezes era gargalhadas sonoras, com alguma chalaça bem dita, o furor truculento do «Chico limeirense» e do «Zé Caveira», prestes a se esfaquearem.





Quanta vez os seus esgares de palhaço aposentado não fizeram a Emília rebolar e tremer, naquele seu riso casquinado e retumbante, que enchia e atufava os ecos soturnos da «loca»! A Emilia «trem de carga» — assim apelidada porque em bebedeiras contínuas, xingando os outros se descompondo toda, resistia à prisão, tombando em cada esquina, como um trem de carga que para de estação em estação, sendo precisos os braços de quase o destacamento inteiro, para a transportarem de rastos até o xadrez distante!




E porque o Salustiano era brando assim e avesso a brigas a desordens, as moradoras da «loca» o queriam muito e por consenso unânime das divas e mancebos daquele cortiço lhe ficou o apelido mimoso — Salustiano Claudino, o «beija flor».




Descia pois o Salustiano «beija flor» a rua do Salto quando lobrigou na esquina da rua Luiz de Queiroz e nas trevas fúnebres da noite o pingo rubro de um cigarro fumegante, ali, bem junto à mole de granito das vastas construções, de onde surgira mais tarde a «loca de pedra»; cigarro tão fumegante, no negrume vasto da noite e em plena esquina, só algum guarda noturno naquela hora tardia poderia chupá-lo e o «beija-flor» medroso, já se dispunha a galgar a mole de pedra e ganhar o seu quarto na «loca», varando pelo quintal em declive, quando estacou no passeio, estarrecido e pávido ...






Um ruído insólito, o tac-tec nervoso do um tacão de sapatinho Luiz XV, acalcanhado, ressoava ligeiro no passeio e o «beija-flor» arrepiado viu passar ao seu lado um vulto feminino de saias roçagantes e dilatou-lhe as ventas numa delicia consoladora, aquele perfume procuradíssimo nos baús dos mascates turcos — o «korylopis» do Japão.


E entre o pingo rubro do cigarro fumegante e o tacão do sapatinho Luiz XV acalcanhado, os únicos seres perceptíveis na escuridão opaca da noite tenebrosa, ao lado do «beija-flor» cozido ao muro da esquina, travou-se este dialogo:

—- É você, «Isaias»?




—Sou eu mesmo, «Libania»; faz tempinho que estou pregado aqui na esquina, a sua espera, para lhe dizer um sentimento que tenho aqui no peito...




— Será do pulmão? —Não Libania Rita, é do coração, mas não é doença; é pior do que doença, porque é ciúme e desde que eu vi você andar em derriço com o Salustiauo, andou querendo lhe dizer duas palavrinhas, porque... ou bem eu, ou bem ele...




—Alin!... mas eu tenho medo de prosear aqui na esquina e meu quarto, na «loca», está escuro que nem breu, não tenho querosene na candeia, nem fósforo para alumiar a estrada.




O «beija-flor» não quis ouvir resto do dialogo; alma generosa e mão aberta para todos os sofrimentos, não pode tolerar que a Libânia Rita sofresse por falta de luz — a Libania que tanto se divertia com as suas pilhérias inofensivas — e o «beija-flor» galgou o muro e correu pelo quintal até o seu quarto, enquanto pela rua o José Isaias seguia ao longo do quarteirão, fazendo tilintar no bolso da calça os últimos níqueis, e ia comprar uma vela de espermacete e uma caixa de fósforos marca olho, na venda do José Toretti.








Sereno e majestoso, qual a estátua gigantesca estátua da liberdade iluminando o porto de Nova York, assim o «beija flor» postou-se ante a porta do cubículo de Libania Rita e soerguia na mão canhota uma lamparina de pavio aceso, quando o José Isaias defrontou com ele.




Um clarão de ódio faiscou nos olhos vermelhos do Isaias, o ciúme incontido resumou de sua boca, numa intimação feroz:




—Arreda dai, Salustiano.




Mas o «beíja flor» não viu o clarão de ódio, nem reparou na fisionomia transtornada do companheiro da Libania, que presenciava o drama e replicou por chalaça, com uma voz aflautada, como no circo de cavalinhos:




—Aqui hoje nós se despedaça, mas eu não saio.




O José Isaias circunvagou em torvo olhar de assassino e viu junto a parede um pau comprido e grosso, a escora talvez da alguma porta; ergueu-o rápido e fulminante, com as mãos ambas e uma pancada única abalou o eco da «loca», como um estilhaçar de vidro de janela, uma vibração sonora de tigela rachada.





Caindo de borco, o crânio espatifado, um liquido sanguinolento e espumoso a escorrer-lhe pela boca ao clarão fumarento da lamparina que tombara, Salustiano Claudino «Beija flor» entrou em agonia.



E morreu...






HUGO CAPETO





Glossário








Trilar: soltar a voz, trinar
Despenhar: cair de grande altura
Lúgubre: que evoca a morte
Frinchas: fenda, fresta
Desvão: espaço que fica entre o forro e o telhado
Bulcão: aglomeração de nimbos, indício e causa de tempestade
Crocitar: gritar como um corvo
Pávido: tomado de pavor
Chalaça: dito ou feito espirituoso, zombeteiro, escárnio
Esgar: jeito, careta de escárnio
Atufar: fazer crescer, tornar inchado
Lobrigar: enxergar com dificuldade na escuridão
Tacão: salto do calçado
Roçagante: que se roçaga, que se arrasta
Derriço: encontro, conversação, namoro

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Mistérios de Piracicaba -4-

INGRATIDÃO DE ESCRAVA



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Em um dos primeiros dias do ano, à hora inclemente do sol a pino, fomos encontrar no “Asilo” uma pobre negra envelhecida, decrépita, quase à beira do túmulo em que fatalmente cairá ao sopro gélido da morte.

Naquele cérebro cansado os pensamentos se confundem, embaralham-se as idéias e em seus lábios trêmulos, apenas adejam monossílabos imperceptíveis, palavras vagas ou mesmo, às vezes, frases incompletas e desconexas.

Mas- coisa estranha- em certas horas, no silêncio tumular daquela casa, ecoa, suave e comovedor, um cântico melodioso, um doce hino todo repassado de ternura, ungido de um encanto celeste que enternece a alma e amaina o furor do coração –é mendiga que canta.


Sentada sobre o leito rude, a olhar pela janela o rio que ali embaixo desliza manso e sinuoso, a desvairada negra parece, num momento de lucidez, lembrar-se do seu passado e reporta-se então com o pensamento às horas felizes que suas orações e do culto fervoroso que lhe ensinaram a prestar ao Supremo Criador.

Enlevada num misticismo intenso, toda entregue às contemplações, vai entoando os salmos dos apóstolos os cânticos religiosos e as breves orações em louvor àquele que, na cruz ignominiosa, derramou o sangue inocente para a salvação da humanidade pecadora.

É um quadro tão simples, mas ao mesmo tempo tão significativo e belo, que o espectador de coração sensível sente-se comovido e não pode refrear o pensamento que voa por entre as névoas da cisma e das meditações.

Ali fora, no báratro medonho das agitações mundanas, rasteja a calúnia, explode o ódio, reina a hipocrisia, estorce-se o homem nas garras da perfídia e vasqueja nas ânsias convulsivas da paixão mesquinha.

Entretanto, na pobreza de um quarto abafado, uma criatura desconhecida, sem as comodidades dos salões nem o brilho das festas, espera resignadamente o alfanje implacável da Parca destruidora sem um queixume, sem um ai de desespero, antes abismada num róseo oceano de inefável ventura.

Ali tão perto, para além do rio que serpenteia murmuro, beirando a casa humilde dos pobres, há lágrimas amargas e ódios implacáveis; mas a velhinha ignora o rumorejar do mundo e o fervilhar das misérias da terra: canta, canta piamente, invocando a presença dos anjos níveos que lá do alto a protegem, ungida de sinceridade, impregnada de um suave misticismo comovedor.

E como é belo, como é sublime assistir a este espetáculo maravilhoso de uma pobre criatura caminhando para a sepultura a modular os hinos aprendidos na fase transitória da adolescência, enquanto a humanidade, pelas encruzilhadas da vida, perde-se no labirinto do pecado, chafurda-se no lodo do crime e tomba enfraquecida no atascal mefítico da hipocrisia e da calúnia.

E assim vinha pensando, de regresso daquele benemérito estabelecimento, em que a velhice exausta e a mendacidade reconhecida encontraram lenitivo para suas mágoas e bálsamo para suas dores, quando o meu companheiro de jornada, um velho piracicabano que fora dono da primeira casa de tijolos construída na antiga Rua da Quitanda, hoje 15 de Novembro, interrompeu o silêncio:

- Veja como são as coisas. Aquela negra velha, cuja atitude de santidade tanto comoveu seu coração, foi a escrava mais ingrata de que há memória.

-Aquela pobre doida?

-Doida ou não, o caso é que a presença da negra encanecida avivou em minha memória uma recordação dolorosa de um crime, em que se via de um lado a encarnação da ingratidão e de outro, a personificação da bondade.

Reportei-me a um passado distante, a uma noite de festa, em que o povo, alegre e satisfeito ouvia no jardim a velhas músicas da antiga Banda Stipp, enquanto em um lar, até então feliz, um honrado cavalheiro, pertencente a uma das mais distintas famílias de Piracicaba, era vítima do atentado mais hediondo, uma inominável ingratidão, originada em condenável cobiça.

-Esta negra decrépita, que hoje hinos enlevadores, com toda essa beatitude que comove os visitante do Asilo, foi a figura principal deste drama horrível e misterioso, que levou ao luto e a desolação ao seio de uma família honrada e boa, bem digna de melhor sorte.

-E o pior, meu caro amigo, o pior que é que o crime ficou impune. A mão criminosa, que tão certeira e perversamente agiu, roubando a uma esposa a solicitude com companheiro fiel das alegrias e dos dissabores da vida a três inocentes crianças as carícias consoladoras de um pai amoroso, não recebeu as merecidas algemas da punição.

-É uma história bem triste, que pouca gente conhece. Se quer conhecê-la, vá à noite ao clube e eu lhe contarei tudo.

À noite, não podendo resistir à curiosidade, fui ao clube e lá ouvi, comovido, a história da velha escrava. Em velha e espaçosa casa, já demolida, da antiga rua da Quitanda, residia com sua família , em janeiro de 18**, o coronel Camargo, sitiante de haveres e proprietário de algumas das melhores casas da cidade.

Filho de rico fazendeiro natural de Itu, homem operoso e de bom coração, tinha a bolsa sempre aberta para socorrer os necessitados que, conhecendo a filantropia proverbial que o caracterizava, não vacilam em lhe estender as mãos súplices, cada vez que se viam em dificuldades.

Vivia assim o velho piracicabano, cercado de estima e do respeito de quantos o conheciam, feliz no doce aconchego do lar que tão caro lhe era.

Um dia, em conseqüência talvez de uma corrente de ar, ao sair do Teatro Santo Estevam, onde fora assistir com a esposa solícita a uma representação da companhia Couto Rocha, apanhou um esfriamento e foi para a cama.

Em sua casa vivia, neste tempo, como criada de confiança, uma negra nonagenária, que fora escrava da família e que, por amizade ou gratidão pela alforria alcançada antes da lei de 13 de maio, não quisera abandonar o “sinhô moço”, que ela ajudara a criar.

Tal dedicação comovia a família Camargo, já acostumada a tratar da negra como pessoa de casa. O enfermo, que já se achava na convalescença e que se encontrava grato ao interesse que por saúde revelava a velha mucama, disse-lhe uma noite, ao receber de suas mãos uma chávena de chá:

-Não esqueço sua bondade, minha boa Filisbina, tanto que no meu testamento você é contemplada.
-Ora, Nhonhô...
- Sim, você sempre foi uma escrava serviçal, e agora me trata como se eu fosse seu filho.

- E a negra véia quer bem Nhonhô como fio memo.

-Por isso mesmo, se eu morrer, você receberá dez contos de réis, como recompensa de seus serviços e de sua dedicação para comigo.

-Ora, Nhonhô, não fale de murrê que isto dexa a gente triste... -Ninguém sabe o que está para acontecer e eu sou previdente, Filisbina. Mas como está delicioso este chá.

E entregando a chávena à velha mucama, o enfermo deitou-se de novo, puxou as cobertas até os ombros e daí a minutos ressonava.

Felisbina, que se sentara perto de leito, de vigília, enquanto a esposa do enfermo, fatigada, descansava no quarto próximo, começou a pensar, então, no que lhe dissera há pouco, o magnânimo patrão,

Dez contos de réis... Que fortuna para uma velha negra, que de seu nunca tivera mais de alguns tostões. Era verdade que nada lhe faltara ali, nem roupa, nem fumo nem pinga... Mas dez contos de réis... Que felicidade para uma pobre como ela...

Na noite seguinte o enfermo, que já se achava em convalescença. Piorava. Uma recaída? Alguma complicação? O médico debalde procurou a origem daquele agravamento da moléstia. Fizeram uma conferência médica. O dr. Tibério, o dr. Paulo Pinto e o dr. Possolo examinaram o enfermo com carinho e interesse, mas confessaram desolados, que não podiam desvendar o mistério daquele agravamento no estado do enfermo, cuja debilidade se acentuava de hora a hora.

A pobre esposa, com olhos lacrimejantes. Não poupava sacrifícios no solícito tratamento do amado companheiro de tantos anos. A ex-escrava, cada vez revelando maior dedicação, não abandonava o quarto do enfermo.

Uma noite, a esposa aflita e chorosa, contemplava, no quarto vizinho, o pobre enfermo, quando repentinamente observou que a velha Felisbina tirava do seio um pequeno embrulho e esvaziava o conteúdo num copo dágua.

Admirada, mal contendo a respiração, a infeliz senhora ficou como que pregada ao soalho. Daí a pouco o enfermo tosse e pede água. A negra, toda solícita, dá-lhe o copo dizendo:

- Beba, Nhonhô, que a água refresca a cabeça...

O enfermo pega o copo e vai levá-lo aos lábios, quando uma voz rouca e nervosa lhe chega aos ouvidos:

- Não beba! Não beba...

Ao mesmo tempo, quase cambaleando de comoção, avança a esposa, toma-lhe o copo das mãos trêmulas e diz fitando os olhos pávidos da velha mucama:

- Miserável!... Miserável assassina... Bem andava eu desconfiada deste monstro em figura da gente!... A negra, vendo-se desmascarada precisamente quando menos esperava, caiu de joelhos e arrastando-se até o leito em que o enfermo, mudo de espanto, acompanhava aquela triste cena com os olhos esbugalhados, suplicou-lhe em voz trêmula e chorosa:

-Perdão, sinhô moço... perdão... Ai, meu Deus do céu... Pensei que o Nhonhô morria mêmo e... ai sinhô moçõ... perdão...

Aquele barulho, no silêncio tétrico da noite, chamou a atenção dos serviçais que se achavam na cozinha e que correram ao quarto.

Posto a par do que se passava, agarraram a negra velha, enquanto um próprio sobrinho da criminosa, indignado com a inominável ingratidão gerada pela cobiça sórdida dos dez contos de réis, com que a mucama sonhara dia e noite, saiu à procura do alferes P......., que era neste tempo o delegado de policia.

A presença do alferes P..... e de sua ordenança infundiu maior terror à criminosa, que manietada, continuou a gemer: -Ai meu Deus do céu... Perdão, sinhô moço... perdão, sinhô... perdão pra mãe negra...

O pobre enfermo, com lágrima nos olhos, assistia a tudo com um silêncio quase inexplicável.

Afinal, quando o delegado, num gesto enérgico, mandou que sua ordenança levasse a criminosa para a cadeia, o cel Camargo levantou-se um pouco de leito, estendeu a dextra e disse com voz fraca:

-Deixem-na...

Todos olharam com espanto. E ele continuou:

-Ela foi minha ama... Era dedicada e boa... Depois... vejam como está arrependida”

O delegado relutou. Tais foram, porém as súplicas do enfermo, que não foi possível resistir. E, com o generoso perdão, foi a negra para a casa de uns parentes, onde voluntariamente se enclausurou.

Dois meses depois o cel Camargo, em conseqüência do vidro moído que lhe ministrara a velha mucama, em noites consecutivas, falecia, pedindo ainda, à hora suprema de expirar, que nada fizessem à sua velha ama, que ao receber a notícia fatal, chorava e ria ao mesmo tempo.

Estava louca a desgraçada ambiciosa criatura, que tão mal pagara os benefícios recebidos de seu magnânimo Sinhô moço...

Hugo Capeto


Apêndice Mucama: escrava ou criada negra, geralmente jovem, que vivia mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios. Manietar: amarrar as mãos, tolher os movimentos. Enlevado: em arroubos de encanto, maravilhado extasiado. Báratro: abismo, voragem, inferno. Vasquejar: ter convulsões,contorcer-se. Parca: ma mitologia clássica, cada uma das três deusas (Cloto, Láquesis e Átropos) que determinam o curso da vida humana, morte. Níveo: relativo à neve, branco. Chafurdar: espojar, evolver-se em, corromper-se. Atascal: lugar onde há lama, lamaçal. Mefítico: nocivo à saúde, tóxico, pestilento fétido. Mendacidade: característica de ser mentiroso, falso. Encanecer: branquear os cabelos gradativamente.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Mistérios de Piracicaba -3-



Assombrações do Bairro Alto -2-



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Debalde o velho Moreira tentou conciliar o sono naquela noite de folia.






Recordara-se que, como testemunha jurada, ocultara grande parte do que sabia, para não agravar a situação do réu.



Passou lhe na mente que as almas não podiam pedir vingança contra Joaquim Ferraz, que já tinha sido despachado para o outro mundo por um tirinho carteiro que lhe descarregarei o Manduca Pereira, quando aquele pretendeu passar-lhe uma sova com um rabo de tatú.



Convenceu-se que as almas das duas mulheres estavam revoltadas contra José Ribeiro, marido de Manoela Maria, contra ele, Moreira e os jurados; contra o sem-vergonha José Ribeiro, porque a despeito de ter com convicção denunciado Joaquim Ferraz como sendo o autor do assassinato de sua mulher, veio, mais tarde, depois de ter comido bola, declarar publicamente que o cadáver encontrado,a cuja exumação assistiu, era de cor preta e tinha cabelos grenhos, ao passo que a sua mulher era branca e de cabelos lisos e compridos.

Contra ele e os salafrários dos jurados porque não souberam cumprir o juramento prestado com a mão sobre os Santos Evangelhos.



Cobriu então a cabeça, receoso de que os espectros descritos pelo cabra pernóstico surgissem no seu quarto.

Assim abalado, os fartos goles de quentão, que havia tomado durante a folia, entraram em ação.



Começou a transpirar com abundância e, depois, foi atacado por uma espécie de crise imaginaria que se prendia ao crime praticado por Joaquim Ferraz e o seu pagem.



Desenrolou-se na sua imaginação todo o cenário de sofrimentos da infeliz Manoela Maria: os rodeios e tretas de Ferraz para transviá-la, a vida escandalosa que ambos levaram na tapera velha, durante meses; os ciúmes e ameaças aterradoras do amante; o passeio no carreador do mato até chegar no cerne de cabriúva estendido ao lado do caminho, onde se assentaram até que viesse o negro Paulo, munido de um bom cabo de foice, a súplica que de joelhos, chorando com os braços cruzados na cabeça a amásia fazia para que não a desfigurassem cortando os seus longos cabelos; a ordem áspera dada ao pagem para que desse o golpe mortal; a ferocidade com que cortou os seios da vítima já prostrada no chão e os dois talhos longitudinais feitos no couro da cabeça com o fim de grudar e fixar, com o sangue que vertia e coagulava, a cabeleira grenha; a exumação do cadáver e a sessão do júri, duas únicas cousas que realmente testemunhara.



Estranhou que nesta exumação o cadáver tivesse as feições da mártir Santa Filomena, que vira no quadro pendurado numa das paredes da sacristia da matriz.



Notou também que o júri não se compunha do mesmo pessoal que ouvira com tanta atenção o seu depoimento;—o juiz tinha a figura de José Ribeiro, marido de Manoela Maria; o promotor a de Manoel da Cunha, senhor do sitio onde fora encontrado o cadáver: e os jurados homenzinhos com o tipo de foliões. Distinguiu a figura sua pessoa que se dirigia para prestar o juramento, quando o pulso forte de Manoel da Cunha o deteve, segurando-o pelo braço com um fortíssimo aperto.



Despertou muito assustado e levantou-se com a imaginação muito exaltada.



Desde então, durante meses, só se sentia bem com o dia claro e parte da noite enquanto havia lume, quando naturalmente, os fantasmas não se atreveriam a aparecer. Mas esse relativo estado de sossego era pago caramente quando tinha que se movimentar à noite, mesmo nas de luar.



Quantas sombras e figuras misteriosas se interpunham no seu caminho. Como se lhe arregalavam os olhos avistando ao longe uma vaca pintada, deitada no meio da rua! Quantas vezes deixou de olhar para traz, com o coração batendo fortemente, receoso de que visse espectros seguindo do perto os seus passos!



Quantas vezes os seus cabelos só eriçaram e as suas pernas bambalearam com a aproximação de um redemoinho de vento, por passar-lhe pela idéia o encontro que tivera o cabra.



Durante este estado de excitação fantástica, tomou-se Moreira, de fato, de uma esquisita mistura de grande credulidade e imaginárias visões.


Por pouco, devido ao contido, não ficou o Bairro Alto envolvido numa atmosfera de sonhos e fantasias.




Estranho como pareça ser, da própria credulidade dos moradores, adveio entrar o Bairro Alto nos moldes ambicionados por Joaquim Quaresma.



O padre José Gomes, finório e no expediente pratico, fez anunciar que havia recebido de Roma relicários que, quando trazidos no pescoço podia, qualquer um, rezando o magnificat, sem receio enfrentar o sobrenatural e afugentá-lo.



E assim, com a distribuição larga destes relicários, deixou o Bairro Alto do ser um lugar mal assombrado.





HUGO CAPETO

Mistérios de Piracicaba -2-

AS ASSOMBRAÇÕES DO BAIRRO ALTO -1-



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Na manhã seguinte a da noite da folia em casa do Moreira, logo depois do almoço, o cabra pernóstico foi à casa de Joaquim Quaresma, proprietário de várias datas de terrenos no Bairro Alto. Era a ocupação de Quaresma o tirar esmolas para o Divino com uma bandeira bem enfeitada e um bom séquito de tocadores de violas, caixas, adufes e pandeiros, percorrendo as fazendas e povoados cantarolando, recebendo toda a sorte de ofertas que faziam, e, nessa exploração rendosa, era bem tratado e via a todos os dias novas faces e novas cenas. Era considerado como homem viajado e os seus conceitos muito acatados no Bairro Alto.


Logo que o cabra assentou-se, contou com orgulho o efeito que a sua história de assombração produzira no ânimo do velho mineiro. Lavrou um tento, disse-lhe Quaresma, julguei que o meu compadre fosse um dos poucos desabusados desta vizinhança.

É dos desabusados que um abuso com minhas histórias, contadas ao meu modo, atalhou o cabra.

Quaresma ponderou-lhe, então, que fazia mal estar cultivando no ânimo dos pobres crédulos, sem proveito algum, as suas fantásticas visões.

Contou-lhe que o Bairro Alto desvalorizou-se e perdeu muito desde quando reservaram uma das suas quadras de terreno para o Campo da Forca, chegando a ser considerado um lugar assombrado, que as suas casas muito isoladas umas das outras e as suas ruas assemelhando carreadores, eram um campo azado para nele figurarem os Saci-Pererês, boitatás e outras inventivas; que os moradores eram todos descendentes dos antigos povoadores, gente ignorante e supersticiosa, que vinham transmitindo de pais a filhos as histórias de lobisomens, cavalos sem cabeça e assim outras minhocarias, para as quais todos tinham boa disposição para ouvir e grande facilidade em acreditar; que era preciso que este estado de coisa tomasse outro molde e, portanto não continuasse com suas práticas inconvenientes.

Se o meu compadre Moreira, disse Quaresma, deu crédito a você, isto advém, tão somente do fato de ter citado maliciosamente os nomes daquelas duas mulheres e também porque ele mora, há muitos anos, neste decanto onde aninhou-se a superstição.

O compadre Moreira, continuou ele, andou muito tempo aborrecido, depois do julgamento no processo Joaquim Ferraz e seu pajem, porque como testemunha, contou só o que viu e ocultou tudo o que ouvira de sua própria mulher.

É o cãs: a negra Rita, mulher de Paulo, pajem de Joaquim Ferraz, viera à vila trazendo consigo uma rapariguinha sua filha, a fim de sujeitá-la ao tratamento de uma das mãos que fora apanhada e ralada pela cevadeira de mandioca.

Ali na vila, a negrinha gritava a noite toda de dores e, para não incomodar a vizinhança, mudaram-na para uma pequena casa no quarteirão debaixo.

Muito bondosa, vendo a Rita tão isolada e só o que a negrinha teria apenas horas de vida, resolveu fazer-lhe companhia durante a noite.

Era já tarde quando, inesperadamente entrou seu marido, com a cabeça rapada, espantado e trêmulo, o que fez a Rita perguntar, exclamando: O que é que há, meu Deus?

Paulo contou então, que no sítio no fim do carreador de fundo no mato, encontrou-se conforme combinado, com Joaquim Ferraz e a sua amante Manoela Maria, mulher de José Ribeiro; que Ferraz, tomando uma tesoura que trouxe consigo, tosquiou rente os cabelos dele, Paulo, e em seguida os da amante; que isto feito, ordenou-lhe que matasse a infeliz mulher e que, diante das súplicas desta, faltou-lhe o ânimo e então Ferraz, com a faca na mão, dissera: “não queres ficar ferro, negro” que mais de medo de morrer na ponta da faca do que o interesse de ficar liberto, dera a pancada fatal e ela tombou; que em seguida procederam o enterramento além do rumo, em terras de Manoel da Cunha, tendo antes disto ajustado a sua cabeleira na cabeça da defunta; que terminada esta tarefa disse Ferraz: “estamos garantidos., se descobrirem esta sepultura encontrarão entre os ossos os cabelos grenhos e hão de presumir que aqui foi enterrado um escravo de Manoel da Cunha.

Contou mais, que na tarde última, fora descoberto o cadáver e, ao saber disso, o seu senhor dissera-lhe que fugisse para bem longe se não queria ser enforcado.

Nesta mesma noite, morreu a negrinha e depois do enterro a Rita, alucinada e em estado febril, desapareceu, sendo encontrada dias depois, morta, perto do córrego de Nha Flor; toda esfarrapada, cheia de arranhaduras pelo corpo e com as mãos apertando o peito.

O que é assombroso em tudo isto, é que durante o dia quando o compadre Moreira andava procurando no mato de Manoel da Cunha madeiras para lavrar, dirigindo-se para um local onde havia ajuntamento de corvos, ali encontrou a sepultura já violada de Manoela Maria. Nesta mesma noite, a sua mulher aqui no Bairro Alto, desempenhando uma missão caritativa ouvia, sem esperar a narrativa que acabo de contar.


Não tendo minha comadre revelado a quem quer que seja o que ouvira senão do marido, este, atendendo aos pedidos dos parentes de Ferraz, limitou-se a contar o que vira. Só mais tarde, depois do julgamento, quando o próprio Ferraz, um verdadeiro maluco gabava-se em liberdade, de suas ferocidades nessa tragédia é que começou a contar o que sabia.

Hugo Capeto


Observações

Mantivemos o texto tal qual foi apresentado no original, fazendo apenas a correção ortográfica que se fazia necessário.

Seria interessante ler também a introdução aos textos de Hugo Capeto, que está localizado nos Mistérios de Piracicaba -1-.





Apêndice


Adufe: tipo de pandeiro quadrado de origem árabe, feito de madeira leve com membranas retesadas de ambos os lados.

Data: terreno retangular medindo de 20 a 22 metros por 40 a 44 metros.


Desabusado: que não tem abusão, que perdeu a ilusão, preconceito ou superstição.


Carreador: diz-se de ou caminho aberto no meio de uma lavoura.


Azado: que é conveniente, oportuno, propício.


Boitatá: mito indígena simbolizado por uma cobra de fogo ou de luz com dois grandes olhos, ou por um touro que lança figi oekas vendas,


Decanto: qualidade ou condição do que é decantável, exaltabilidade.


Grenho: despenteado, desgrenhado

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Mistérios de Piracicaba -1-



A Loca de Pedra



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Explicações


Por todas as avaliações que sejam feitas desta cidade, falando de seu explosivo desenvolvimento do início do século XX, de ter sido considerada com um Atheneu Paulista, por ser fonte geradora de múltiplos fatos dentro do ensino, do trabalho, das artes ou até mesmo lugar de vida de figuras ilustres, por ter se envolvido em revoluções, não muito se falou sobre seus costumes, seu misticismo, suas figuras do dia a dia, de sua habitualidade.

Com o firme propósito de vermos expostas facetas pouco conhecidas, eis que partimos em busca de verdades e/ou fatos dentro destas metas. Talvez alguns sejam pouco saborosos. Outros, o tema mostra-se tão irreal, que é obvio a capacidade de criação fantasiosa de quem redigiu.
Em alguns capítulos a serem abordados, o relatado permanece imerso em uma névoa, onde a realidade mistura-se com a ficção, e perdemos os parâmetros para a exata avaliação. Em outros, é nítido que é um fato é ou ficção.

Alguns dos capítulos mencionados foram escritos sob o pseudônimo de “Hugo Capeto” e publicados no Jornal de Piracicaba na década de 1920 sob o título de “Mistérios de Piracicaba”, que iremos manter. Debalde os esforços feitos, não conseguimos identificar o nome da pessoa que escrevia sob este pseudônimo. Várias hipóteses foram aventadas, mas na ausência de qualquer comprovação, preferimos omitir estes nomes.

A LOCA DE PEDRA

Quando em 1877 o fragor da dinamite estilhaçando rochas e o rumor cavo e profundo dos alviões rasgando a terra, pouco mais longe onde a cidade acaba, para além do Bairro Verde, anunciavam o advento da primeira linha férrea, em Piracicaba, o local onde deveria construir-se a estação da Sorocabana era uma incógnita que comportava múltiplas soluções para os bons moradores desta antiqüíssima Constituição.


Certamente as rodas da via férrea atingiram a margem do ribeirão Piracicamirim e transpondo-o na bifurcação das estradas de Santa Bárbara e Rio das Pedras ou alhures, viriam terminar nas margens do rio Piracicaba, com de Araritaguaba (Porto Feliz) e pelas canoas e balsas que rio acima vinham abicar na Rua do Porto.



Era esta, pelo menos, a solução dada àquela incógnita pelo antigo piracicabano, coronel José F. de Camargo, senhor de largo descortino comercial e grandes latifúndios, na baixada que fronteia o rio e por onde se estendem hoje a Rua Luiz de Queiroz e adjacências.

Então (quem nos conta esta historia é Harun-Al-Raschid, não o califa de Bagdá lendário e brumoso, mas, o outro, visível e palpável, o homem dos mistérios, que os guardas noturnos encapotados e friorentos vêm passar, por noite alta, nos lugares tenebrosos), então o Coronel José Ferraz concebeu o plano de uns vastos armazéns para cargas, com quartos sobressalentes para hospedarias e cômodos para negócios — e no quarteirão remanescente entre as ruas do Salto (R. Cristiano Cleopath) e do Rocio (R. Mns Manoel Francisco Rosa) lentamente foi levantando aquela comprida construção em pedra e ferro.

Mas, a 19 de maio daquele ano a estrada foi aberta ao trafego e a estação, falhando a todas as conjecturas, acabava por erguer se no Bairro Alto, pouco aquém do parque Barão de Serra Negra — e os vastos armazéns da Rua Luiz de Queiroz estacionaram também acima dos alicerces, sendo despedidos os pedreiros espanhóis que iam erguendo aquelas muralhas a dois mil e tantos réis por dia.


Mais de uma década havia decorrido, a hera e o musgo já se estendiam virentes e ovantes sobre a tosca alvenaria rejuntada com cimento, quando o primitivo plano foi modificado e construiu-se e sobradão de meio tijolo, com oito frestas superiores e quatro portas e outras tantas janelas no pavimento inferior, ficando apenas em arcadas obstruídas com tijolos a parte da alvenaria que confina com a Rua do Rocio.

Outro sobrado ergueu-se mais tarde ao lado, as paredes da Rua do Salto foram levantadas e cobertas por um telhado e antes, bem antes do honrado Toretti instalar ali o seu honrado balcão, já o primitivo sobradão pintado do amarelo. Era o cortiço, conhecido pitorescamente pela denominação popular do — Loca de Pedra.


Cortiço de vida noturna intensa pelos seus cubículos virgens de vassoura, onde a poeira negra dos anos decorridos se casa tão magnificamente com o viver anti-higiênico dos moradores, tem passado os vultos mais eminentes do cadastro policial - e à claridade baça das noites enluaradas, sob o rumor estrondoso das águas do Salto, ou nas noites tenebrosas em que o vento Sul fustiga os coqueiros da vargem e levanta em turbilhões a poeira grossa do macadame da rua, muitos dramas sinistros, bastas tragédias sangrentas tiveram por palco o pavimento escuro daqueles cubículos.


O «Prateleira», que atualmente expia numa das prisões da cadeia duas penas por crime de roubo com ferimentos e crime contra a honra iniciou-se na «loca d« pedra», onde o “Totico”, muito antes do conflito que lhe valera um tiro na barriga e vários meses de reclusão à sombra do xadrez, já ensaiava a cabeça contra o ventre dos antagonistas ou movia as pernas num fandango ao som da sanfona fanhosa do «Zé Estanislau»; outro «cabra famoso», lá das bandas de Capivarí, comparsa da «Loca de Pedra», que marca as suas entradas em Piracicaba com alguns pontaços de faca e varias passagens consequentes pelo banquinho dos réus, mas sempre absolvido!


«Rocambole», «Guilhermino», Japonês, épicos varões da faca ou do porrete e tantos outros, cuja nomenclatura encheria tiras e tiras de papel e cujas façanhas enchem a crônica do cortiço, justificando a alcunha que circunda como uma auréola de fastígio — "Loca de Pedra"!...

Se a fauna que a frequenta tem produzido tantos e tais espécimes, que avultam nos prontuários da Delegacia de Policia, não menos interessante é a flora que nele vegeta e também merecia uma descrição sucinta e breve.

Eu desejaria apresentar a todos a tia Tereza, matrona precoce, curtida dia e noite pêlos vapores nauseabundos de uma cachaça ordinaríssima, a Julinha, um tenro botão de quinze anos de idade apenas e também fanado pelo álcool causticante de vastas camoecas , a Libânia Rita louçan e dengosa, um ciúmes vivo para as outras saias e um perigo constante a pairar por sobre os corações do sexo de calças, mas...já o galo cantou pela terceira vez: já o oriente empalidece ao clarão difuso das luzes da madrugada e tudo anuncia que o meu poder diabólico e evocativo é findo.


HUGO CAPETO


Nota

Meus pais sempre se referiam a este local quando passávamos nas cercanias do antigo Jardim da Ponte (hoje ocupado pelo Hotel Beira Rio e área da Biblioteca Municipal), ou quando caminhávamos pela Rua Luiz de Queiróz, ainda quando era criança. E deste tempo remoto, restou o vislumbre de sua base, e que avento a hipótese de ter sido as ruinas do referido local, hoje inexistentes, da loca de pedra...











Alvião: instrumento de ferro constituído de um cabo de madeira, uma lâmina com feitio de enxada, de um lado, e uma ponta semelhante à da picareta, do outro, us. para cavar terra dura, arrancar pedras etc.; enxadão, marraco.

Loca: pequena gruta, furna, lapa.

Camoeca: doença passageira, sem gravidade; achaque, embriaguez.
Fanar: cortar.
Fastígio: ponto ou lugar mais alto, cume, pico.s
Macadame: Processo de revestimento de ruas e estradas que consiste numa mistura de pedras britadas, breu e areia, submetida à forte compressão.

Ovante: triunfante, vitorioso.
Virente: que verdeja, viçoso.