segunda-feira, 30 de maio de 2011

Mistérios de Piracicaba -6-


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O DEGREDO DE MARIA FLORA]
O DEGREDO DE MARIA FLORA



I
Certa noite em que me pareceu deserta a casa de Harum Al-Raschid entendi de fazer por minha conta, uma reportagem sobre o homem misterioso que vem clareando o passado obscuro de Piracicaba, com as crônicas suculentas dos fatos narrados neste “Jornal”.

Penetrei no jardim ermo e abandonado aos surtos de vegetação pomposa que sombreia aquela vivenda, transpus a soleira da porta, calcando o botão mágico meu conhecido e entrei...


A reminiscência daquele encontro com a sepultura abandonada, de onde eu vira com pavor cair aquele defunto, que me embargara os passos da fuga desabalada em que eu corria, e também as ilhargas doloridas e as contusões arroxeadas que ainda marcavam meu corpo, quando foi a queda que levei naquele subterrâneo escuro, tornaram-me temeroso e eu levava uma lanterna elétrica na algibeira, além de fósforos e um maço de velas, por precaução.


Convém dizer que Harum não tem água canalizada em casa, nem instalações elétricas, servindo-se apenas de um lampião belga sobre a mesa da sala e uma lanterna de mineiro, que ele transporta de um para outro compartimento.

Porque a água canalizada e a instalação elétrica importam em ter o nome registrado como consumidor, dos livros da Hidráulica e da Empresa Elétrica de Piracicaba, e estes livros SAP verdadeiros prontuários, onde o Sr. Dr. Djalma Goulart poderá descobrir não só a residência, mas também a identidade de quase o total de moradores desta cidade populosa.

Restava ao imposto predial, por onde a ilustríssima senhora Câmara Municipal poder denunciar ao mesmo Sr. Dr. delegado a situação exata do prédio e o nome do morador, as Harum Al Rashchid tomou a precaução de estabelecer os seus penates num dos centenares de prédios interditados pelo eminente Sr. Dr. Valentim Browne e assim, protegido pêlos éditos inefáveis da Inspetoria de Higiene, sem registro nos livros denunciadores dos Srs. Fonseca Rodrigues e Américo do Santos, o meu misterioso amigo vai evocando as sombras dos passados acontecimentos locais.

Entrei, pois. Sobre a mesa da sala o referido lampião belga, solitário e aceso, espargia uma claridade tristonha e doentia, falta talvez do querosene ou talvez da torcida já gasta e requeimada); papeis amarelecidos pelo tempo, espalhados aqui e além, o Almanaque de Piracicaba de há vinte anos atrás; volumes encadernados em couro vetusto e roído pelas traças irreverentes dos armários e, por sobre aquilo tudo, a caveira... o horripilante prendedor de papeis a rir eternamente com a dentadura exposta e falha, a olhar fixamente com as orbitas vazias e escuras, para uni pergaminho encarquilhado...

Peguei no pergaminho, todo garatujado numa letra amiga e esmaecida, numa ortografia contemporânea dos clássicos quinhentistas, onde predominavam as hastes eriçadas dos hh e dos yy subscrevendo toda aquela floresta de letras com hastes eriçadas uma assinatura respeitável —D. Luiz António de Souza!

Mas, por Deus! Segundo os meus estudos de historia pátria e o Quadro Histórico da Província de São Paulo até 1822, pelo brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira, pai do inesquecível. Dr. Brasílio Machado, que foi promotor público nesta comarca, aquela assinatura era do morgado de Matheus, D. Luiz Antônio de Souza, que foi capitão general e governador da capitania de São Paulo desde 1765 até 1775, data em que foi substituído no governo da capitania por Martim Lopes.
Então o pergaminho encarquilhado que eu examinava, tinha mais de cento e cinqüenta anos, quase dois séculos de duração?


Então aquela assinatura vetusta e respeitável andava para ali, jogada sobre a mesa de um antiquário, sob o olhar fixo e indiferente das orbitas negras de uma caveira?... Andava sim, — e mão ciumenta arrebatou-me o pergaminho, após o ranger sinistro de uma porta que eu não vira abrir-se.

Harum estava diante de mim e tendo arrebatado o pergaminho contemplava, com amoroso carinho, as garatujas escritas e a assinatura solene do célebre morgado de Matheus, D. Luiz Antonio de Sousa.

Este documento, disse ele, é quase contemporâneo da fundação de Piracicaba, quando ela começou como presídio, ali na margem direita do rio onde hoje se ergue o Engenho Central


Como sabe o meu amigo, o Dr. Joaquim da Silveira Mello há muito tempo que trocou os cálculos de logaritmos, os binômios e polinômios, e extração de raízes cúbicas, azimutais e tudo mais da engenharia, pelas autuações no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, formais de partilha c contas do Regimento de Custos, isto com gravame e perda sensível para a historia pátria, da qual é ilustrado cultor. Pois, o Dr. ]oaquim da Silveira Mello, que é por si um arquivo vivo das crônicas piracicabanas, ainda tem á sua disposição o arquivo do primeiro tabelionato e outro arquivo particular, de onde eu tirei este pergaminho com a assinatura do morgado de Matheus.

Quando li seu conteúdo vi que era um documento inestimável para a publicidade dos “Mistérios de Piracicaba”, e com o faro arqueológico, que nunca me abandona, em se tratando de escavações históricas, foi reconstruído o drama e as cenas que deram lugar à intervenção do capitão geral governador da capitania na vida local de Piracicaba.

E comodamente refestelado na fofa poltrona da sala de Harum Al Raschid, sob a claridade mortiça do lampião belga, dispuz-me a ouvir um mistério relatado por tão ínclito narrador.

Saiba meu amigo que Piracicaba deveu a sua existência de arraial e depois povoação, vila, etc. a uma razão puramente econômica e estratégica e como toda história deve ter uma epígrafe, os fatos que vou narrar podem bem ter o título “O Degredo de dona Maria Flora.


II
O morgado de Matheus, D. Luiz António de Souza, sendo nomeado governador da capitania de São Paulo em 1765, teve empenho em executar 03 planos os alvitres da Marquez de Pombal, os quais consistiam era estender o domínio português para o sul e oeste do Brasil.

Depois de entender-se com o governo do Rio de Janeiro e de receber dali os recursos para as explorações do Tibagy e para ampliar possessões portuguesas por esta então capitania de São Paulo, D. Luís António de Souza preparou uma primeira expedição de 650 homens, em 21 canoas e 6 batelões que partiu de Porto Feliz em 1769, com o pretexto de explorar e povoar os sertões do rio Ivahy, na confluência com o Rio Paraná, mas com o intuito real de ir mais além e garantir o território litigioso entre Portugal e a Espanha.

E fez seguir em 1770 outra expedição de duas companhias de aventureiros que foi juntar-se à primeira na barra do lvahy e ambas atravessaram o Rio Paraná, navegando para o Iguatemi, onde em terreno fronteiro ao Paraguai deram começo a uma colônia, depois ali edificaram o “Forte Prazeres”.

Essa colônia de Iguatemi chegou a conter 1.227 povoadores, feitos sair por diversas vezes de São Paulo e, segundo afirma o saudoso diretor do Arquivo de S. Paulo, Dr. António de Toledo Pizza, era seus - «apontamentos históricos»: custou aos paulistas os maiores sofrimentos e privações, consumindo centenares de vidas.

Em todas as povoações da capitania eram recrutados indivíduo e famílias, por ordem de D. Luís Antônio de Souza, os quais deviam povoar aquela colônia, mas ali pereciam de febres e doenças oriundas dos terrenos paludosos do Iguatemi, basta dizer que em 1773, três anos depois da fundação do Presídio de Iguatemi, verificou-se um recenseamento que ainda, incluindo os nascimentos havidos, a população estava reduzida a 556 indivíduos de 1227 que eram no tempo da fundação.

Afinal a colônia foi abandonada então apressadamente que nem retiraram a artilharia e o material do “Forte Prazeres”, dos quais se apropriaram os paraguaios e o arrasaram em 1777.
Enquanto, porém não era conhecido este recenseamento, D. Luís Antônio de Souza tinha tido interesse em abrir uma estrada por terra até aquela colônia, e sendo informado da existência de um picadão dos antigos, que saia do salto do Rio Piracicaba ia ter ao sertão, sabendo que o rio fazia no local uma grande volta arredondada, circulando extensos terrenos cobertos de grandes madeiras, próprio para a construção de canoas, cuja varação para o rio era fácil, resolveu fundar ali uma povoação.

Fundou realmente um presídio, com o fim de aviventar o picadão antigo, de fabricar canoas e de sujeitar os recrutados nestes serviços até a época das monções para a colônia de Iguatemi, pôs na margem direita do Rio Piracicaba um quartel com o destacamento de milícias, um comandante e a férrea disciplina de uma praça de guerra, temperada por uma igreja ou capela, cujos alicerces derrocados ainda podem ser vistos no Engenho Central.

Com os abarracamentos ou arraial daquele lado, logo começaram a se abrir pequenos sítios na margem esquerda, iniciando-se a cultura de cereais, criação de porcos, fabricação de rapaduras, produtos enfim, que achavam franca saída, no fornecimento da colônia de Iguatemi.
Estes sitiantes e moradores da margem esquerda do rio Piracicaba não estavam sujeitos da administração do capitão povoador e nem do comandante da força de milícia, e sobre eles D. Luís Antônio de Sousa havia feito aos primeiros recomendação especial para que fossem tratados com toda a brandura e sem vexação.

Ao amparo dessas regalias, sob a proteção da força de milícia. Os adventícios foram adquirindo terras nesta sesmaria, povoando-se a margem esquerda, e entre estes adventícios aconteceu-se estabelecer-se nas adjacências no atual córrego de “Nha Flor” um jovem casal, originário de Jundiaí, e de onde havia imigrado, para furtar-se às impertinências do respectivo capitão mor.
Esse casal dispunha de recursos pecuniários e abriu lavoura, que logo prosperou, mas, falecendo o marido, a viúva dona Maria Flora continuou a labutar com tamanho proveito nas terras que em pouco aumentou a pecúnia; seu sítio sendo limitado por um córrego começaram os visinhos a designar as terras e vivenda da viúva por córrego da “Nha Fiora”, depois por corruptela” Nha Flor”. Como atualmente o conhecemos.

Enquanto administrava com uma grande disposição varonil lavouras e gado, dona Maria Flora não descurava os cuidados com a alma, e todos os domingos ia ouvir missa, na capela do arraial, que era pequeno e por isto tinha a frente em aberto, prolongada por um vasto telheiro, a fim de conter os fiéis.

Dona Flora era moça bonita e mais realçava a sua boniteza o donaire com que ela montava (a maneira dos homens e ao uso daquele tempo em que o silhão era desconhecido) num cavalo branco, fogoso, que controlava e nutria, ao contato das lindas esporinhas de prata, que ornavam os altos borzeguins da bela amazona, e caracolava com risco de derrubar um cachorrinho, alvo também e felpudo, que o nobre animal conduzia na garupa.

As leitoras riem-se? Pois Rugendas, que foi pintor contemporâneo daqueles costumes, deixou-nos vários desenhos representando o passeio das damas no Rio de Janeiro e era assim que passeavam as nossas tetravós elegantes – levando um moleque com um balaio cheio de objetos de toucador e bugigangas, um papagaio ou uma arara, ou um cachorrinho de estimação, além de crioulinhos, almofadas e mucamas.

Isto acontecia, segundo o testemunho de Rugendas nas ruas de Rio de Janeiro, que já era uma metrópole naquele tempo. Porque pois, D. Flora em Piracicaba não poderia levar na garupa do fogoso cavalo branco, um cachorrinho branco e felpudo, como se usava no Rio?

Aos domingos era certo ver (e quanto m0oço via e suspirava!) D. Maria Flor a cavalo, com um pajem atrás, vadear o Rio Piracicaba, num local que dava vau no tempo da vazante logo acima do ribeirão do Enxofre e dirigir-se para os lados da Igreja a fim de ouvir a missa conventuo-papal (deixem passar o neologismo, porque como já ficou escrito, a Igreja ou capela era em parte edificada e em parte prolongada por um simples telheiro).
Era o comandante da milícia no arraial presídio de Piracicaba um mocetão bem parecido, capaz de virar a cabecinha estouvada de muitas moças solteiras, quanto mais o coração vazio de viúvas, e esse comandante Carlos Bartolomeu de Arruda rendeu-se, passou-se com armas e bagagens para a inimiga.

Chegada ao pátio D. Maria Flora entregava a rédea de seu lindo corcel ao pajem e dirigia-se para os lados da casa do padre, onde já a esperava Carlos Bartolomeu de Arruda, para juntos entrarem na capela. Era esta dividida no meio da nave por um peitoril de balaustres toscos, separando as hierarquias; a frente do altar mor as damas e donzelas do arraial, atrás os homens, as pessoas gradas, capitão, povoador, o comandante; mais além no telheiro, o povaréu.

A amizade crescente e recíproca do jovem oficial pela jovem viúva despertava ciúmes no arraial, e embora procedessem ambos com muita circunspecção e decência, as mulheres não toleravam que D. Flora escolhesse sempre para ajoelhar-se ao lado de um balaústre, nem os moços sofriam que Carlos Bartolomeu se ajoelhasse sempre ao lado dela, separados apenasmente pelo mesmo balaústre.

Não faltavam línguas alcoviteiras nem cochilos das devotas para insinuarem que eles faltavam com a devoção, durante o ritual da missa e nem mesmo respeitavam a presença do capitão povoador, num namoro escandaloso.

Num domingo, durante e depois da missa, correu um alvoroço porque ao começarem os Evangelhos, D. Maria Flora assustada soltou um ai... meio abafado e logo reprimido, mas bastante perceptível na parte da nave reservada para as mulheres. O coroinha que servia de sacristão ia mudar o missal para a direita do celebrante e atraído pelo gritinho, olhou e viu os dois dedos do comandante premendo levemente o braço polpudo e feminino, mas duas velhas beatas (que poderia fiar-se nesta espécie de gente?) estavam mais próximas, logo sussurraram num mexerico venenoso, por toda a igreja e depois propalaram pelo arraial, que Carlos Bartolomeu havia dado um beliscão muito mais indiscreto.


III
Eis de ver como o brinco inocente de namorados, envenenado pela língua viperina das velhas beatas e exagerado pela ciumeira azeda dos rivais, transformou-se logo em arma de perseguição política e como a política, barregã sem entranhas, horrendamente fez recair o peso injusto de um desterro iníquo, em vez de no culpado, em uma viúva frágil como era dona Maria Flora.

O beliscão muito mais indiscreto no modo de ver das beatas correu a igreja, atravessou o telheiro e esparramou-se pelo arraial, e enquanto dona Flora, inocente e incauta transpunha o terrapleno do átrio, com as esporinhas de prata tinindo e ia cavalgar o corcel branco para regressar ao sítio, reuniram-se os maiores como no conselho de guerra, para julgar o caso.


O capitão povoador não apreciava o comandante Carlos Bartolomeu de Arruda, era uma malquerença gratuita, não apoiada em qualquer fato desabonasse aquele moço, quer nas suas funções que no seu trato espetacular, mas, levado por esse sentimento menos nobre, resolveu fazer uma acusação tremenda contra o comandante, ao capitão-mor de Itu, cuja jurisdição e alçada se estendiam até Piracicaba.


Era esse capitão-mor um homem inteligente e letrado, especialmente no latim, em que escrevia epigramas e sátiras com a mesma facilidade com que manejava o vernáculo e era também excelente absolutista em extremo.


Carlos Bartolomeu de Arruda era sem parente e protegido, o que não impeliria o excelente regedor de removê-lo deste comando, mas o povo de Piracicaba, muito afeiçoado a Carlos Bartholomeu, em quem reconhecia esplêndidos predicados, logo representou ao capitão mor de Itu, insistindo pela permanência do comandante e o rigor do bastão de regedor recaiu em dona Maria Flora.


Sob o pretexto de que o caso melhormente seria resolvido com a presença de dona Maria Flora, foi a viúva chamada pelo capitão mor a Itu e ali esperou dias e semanas pela solução do incidente; entretanto aquele chamado atencioso ocultara uma ordem de degredo, do despótico capitão-mor, para longe de suas lavouras, para longe de suas missas de domingo, para longe enfim do comandante culpado mas absolvido, que a fizera gritar de susto, com uma beliscadura ligeira no braço polpudo e roliço.


Política de campanário, que já naqueles tempos coloniais alteava as sete cabeças de hidra hedionda e nefasta. Política pessoal, que nascida de uma antipatia gratuita, mas fortalecida por uma vontade ferrenha, prepotente e arbitrária, intervinha na vida privada de dois entes bem quistos e revolucionava um arraial, que só precisava de paz e braços para prepara! Dona Maria Flora era viúva e moça, o comandante Carlos Bartholomeu de Arruda era solteiro e livre; que muito era que se namorassem aos domingos, na igreja, se eles podiam casar-se e casados podiam com uma prole fecunda dar braços às lavouras incipientes e servidores possíveis da Pátria, numa época de turbulações como aquela?

Carlos Bartholomeu não resistiu por muito tempo às injunções da política prepotente do capitão-povoador, e foi constrangido a deixar o comando da força e deixar Piracicaba, a despeito dos empenhos dos habitantes povoadores que lhe queriam bem,
Mas, voltou tempos depois como posto de sargento-mor e já casado; tornou-se proprietário da sesmaria de Bom Jardim do Salto, que se dilatava entre o Itapeva até a fazenda Monte Alegre e onde faleceu com a idade provecta, ali pelo ano de 1815, sendo enterrado na nova igreja matiz, grades a dentro.


Debalde tentou Carlos Bartholomeu esquecer a antiga amizade com a dona Maria Flora e o que conseguiram as velhas beatas contra o testemunho do coroinha sacristão, e a política do capelão povoador foi que ele, embora casado com outra e sendo bom chefe de família, ligou-se com a viúva e constituiu duas famílias, cujos descendentes espalharam-se pelas então vilas de Curuçá, São João do Rio Claro e Araraquara.


E dona Maria Flora? E o pergaminho assinado por D. Luis Antonio de Souza? perguntei eu vendo que com aquela apóstrofe contra a política Harum Al Raschid havia salteado o curso de sua narração.

Dona Maria Flora cansou de esperar em Itu uma solução que não pedira nem provocara, sempre que se apresentava oportunidade para regressar a Piracicaba, (pois as estradas eram difíceis e as tropas e viajantes eram periódicas), o capitão mor a retinha sob qualquer pretexto, até que ela percebeu o degredo a que fora condenada.


Então, readquirindo aquela energia varonil, que a guiava na administração de suas lavouras, a jovem viúva lançou as vistas para o capitão geral e governador da capitania de São Paulo, D. Luis Antonio de Sousa.


Fez-lhe ver, num ofício repassado de circunstâncias, a prepotência do capitão-mor de tu, que a retinha em degredo por culpa que cometera, com prejuízo para sua lavoura de cereais e cana, e criação de gado, que abastecia a colônia de Iguatemi.


Reclamou contra o prejuízo de suas plantações, longe dos cuidados e da administração dela e pôs em evidência os perigos que adviriam para o povoamento e colonização da capitania, se os colonos e povoadores pudessem ser retirados de suas terras pelos caprichos e prepotências dos capitães mores (pudera, pois ela e o defunto marido já haviam imigrado de Jundiaí para fugir as impertinências do respectivo capitão mor). Com uma tal petição está visto que governador da capitania de São Paulo havia de tomar providências imediatas e estas consistiram de pedir informações ao capitão-mor de Itu e ao capitão povoador deste arraial, por qual motivo mantinham longe de suas terças e haveres uma dona prestimosa, que honradamente ia lavrando terras duma sesmaria perdida nas margens do Rio Piracicaba,

As comunicações entre São Paulo e Itu eram tão difíceis quanto demoradas e assim, entre a troca de ofícios e de informações ainda decorrem um tempo vasto, porém D. Maria Flora afinal foi recambiada para Piracicaba, por ordem indiscutível do governador da capitania.


Harum estendeu-me então o pergaminho que escamoteara do arquivo particular do Dr. Joaquim de Silveira Mello e entre variadas instruções de caratê administrativo, aos respectivos capitães, eu li este despacho fulminante, que revogava o degredo:


”Volte dona Maria Flora para Piracicaba: aly nã consilt que Carlos visite Flora em caza de esta e nen que esta visite o comandante em caza de este, e além disso que nã veja nem na egreja, nem no arrayal, nem na lavoura e se nã encontrem em parte algua- te mesmo na capoeyra”.

Hugo Capeto


Glossário
Morgado: primogênito
Penates: deuses do lar entre os romanos e etruscos, casa materna (fg)
Silhão: cela grande com estribo só de um lado
Vetusto: de idade muito avançada, velho
Córrego de Nha Flor: seu local provavelmente era na altura da atual rua São Josécom o Rio Piracicaba

domingo, 8 de maio de 2011

Mistérios de Piracicaba -5-

O Beija-flor


(continuidade da Loca de Pedra)




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Era por uma destas noites horríveis de Piracicaba, em que o despenhar das aguas no Salto tem um gemido cavernoso e trágico; em que o trilar dos apitos da guarda noturna, de quarto em quarto d'hora, é como um pio de coruja agourenta, pavoroso e lúgubre; em que o assobio do vento sul nas frinchas e desvãos da «loca de pedra» é sinistro e tétrico; em que o ar pesado, na atmosfera funérea tem um cheiro esquisito de sangue coagulado e frio.




Era a hora em que no alto dos postes dispersos, as lâmpadas da iluminação publica parecem tremer de medo das trevas envolventes e os densos bulcões de nuvens viajam no espaço fuliginoso e negro como a asa fatídica de um corvo crocitante e negro. Solitário e ébrio, pela solidão da rua do Salto, ia descendo pávido e cambaleante o vulto negro do Salustiano Claudino, um ex-palhaço de circo de cavalinhos que a falência da companhia e os embates de uma sorte madrasta haviam largado nesta cidade e aqui vivia, temperando panelas como cozinheiro medíocre e divertindo a noite, com os seus ditos alegres, a Mariquinha «tostão», a Maria «porcadeiro» e as outras flores da «loca de pedra» famigerada.










Era engraçado e meigo o Salustiano Claudino e quanto mais bebia mais alegre e brandamente sorria, conciliador o pacífico, nunca se enredando em brigas, desmanchando muitas vezes era gargalhadas sonoras, com alguma chalaça bem dita, o furor truculento do «Chico limeirense» e do «Zé Caveira», prestes a se esfaquearem.





Quanta vez os seus esgares de palhaço aposentado não fizeram a Emília rebolar e tremer, naquele seu riso casquinado e retumbante, que enchia e atufava os ecos soturnos da «loca»! A Emilia «trem de carga» — assim apelidada porque em bebedeiras contínuas, xingando os outros se descompondo toda, resistia à prisão, tombando em cada esquina, como um trem de carga que para de estação em estação, sendo precisos os braços de quase o destacamento inteiro, para a transportarem de rastos até o xadrez distante!




E porque o Salustiano era brando assim e avesso a brigas a desordens, as moradoras da «loca» o queriam muito e por consenso unânime das divas e mancebos daquele cortiço lhe ficou o apelido mimoso — Salustiano Claudino, o «beija flor».




Descia pois o Salustiano «beija flor» a rua do Salto quando lobrigou na esquina da rua Luiz de Queiroz e nas trevas fúnebres da noite o pingo rubro de um cigarro fumegante, ali, bem junto à mole de granito das vastas construções, de onde surgira mais tarde a «loca de pedra»; cigarro tão fumegante, no negrume vasto da noite e em plena esquina, só algum guarda noturno naquela hora tardia poderia chupá-lo e o «beija-flor» medroso, já se dispunha a galgar a mole de pedra e ganhar o seu quarto na «loca», varando pelo quintal em declive, quando estacou no passeio, estarrecido e pávido ...






Um ruído insólito, o tac-tec nervoso do um tacão de sapatinho Luiz XV, acalcanhado, ressoava ligeiro no passeio e o «beija-flor» arrepiado viu passar ao seu lado um vulto feminino de saias roçagantes e dilatou-lhe as ventas numa delicia consoladora, aquele perfume procuradíssimo nos baús dos mascates turcos — o «korylopis» do Japão.


E entre o pingo rubro do cigarro fumegante e o tacão do sapatinho Luiz XV acalcanhado, os únicos seres perceptíveis na escuridão opaca da noite tenebrosa, ao lado do «beija-flor» cozido ao muro da esquina, travou-se este dialogo:

—- É você, «Isaias»?




—Sou eu mesmo, «Libania»; faz tempinho que estou pregado aqui na esquina, a sua espera, para lhe dizer um sentimento que tenho aqui no peito...




— Será do pulmão? —Não Libania Rita, é do coração, mas não é doença; é pior do que doença, porque é ciúme e desde que eu vi você andar em derriço com o Salustiauo, andou querendo lhe dizer duas palavrinhas, porque... ou bem eu, ou bem ele...




—Alin!... mas eu tenho medo de prosear aqui na esquina e meu quarto, na «loca», está escuro que nem breu, não tenho querosene na candeia, nem fósforo para alumiar a estrada.




O «beija-flor» não quis ouvir resto do dialogo; alma generosa e mão aberta para todos os sofrimentos, não pode tolerar que a Libânia Rita sofresse por falta de luz — a Libania que tanto se divertia com as suas pilhérias inofensivas — e o «beija-flor» galgou o muro e correu pelo quintal até o seu quarto, enquanto pela rua o José Isaias seguia ao longo do quarteirão, fazendo tilintar no bolso da calça os últimos níqueis, e ia comprar uma vela de espermacete e uma caixa de fósforos marca olho, na venda do José Toretti.








Sereno e majestoso, qual a estátua gigantesca estátua da liberdade iluminando o porto de Nova York, assim o «beija flor» postou-se ante a porta do cubículo de Libania Rita e soerguia na mão canhota uma lamparina de pavio aceso, quando o José Isaias defrontou com ele.




Um clarão de ódio faiscou nos olhos vermelhos do Isaias, o ciúme incontido resumou de sua boca, numa intimação feroz:




—Arreda dai, Salustiano.




Mas o «beíja flor» não viu o clarão de ódio, nem reparou na fisionomia transtornada do companheiro da Libania, que presenciava o drama e replicou por chalaça, com uma voz aflautada, como no circo de cavalinhos:




—Aqui hoje nós se despedaça, mas eu não saio.




O José Isaias circunvagou em torvo olhar de assassino e viu junto a parede um pau comprido e grosso, a escora talvez da alguma porta; ergueu-o rápido e fulminante, com as mãos ambas e uma pancada única abalou o eco da «loca», como um estilhaçar de vidro de janela, uma vibração sonora de tigela rachada.





Caindo de borco, o crânio espatifado, um liquido sanguinolento e espumoso a escorrer-lhe pela boca ao clarão fumarento da lamparina que tombara, Salustiano Claudino «Beija flor» entrou em agonia.



E morreu...






HUGO CAPETO





Glossário








Trilar: soltar a voz, trinar
Despenhar: cair de grande altura
Lúgubre: que evoca a morte
Frinchas: fenda, fresta
Desvão: espaço que fica entre o forro e o telhado
Bulcão: aglomeração de nimbos, indício e causa de tempestade
Crocitar: gritar como um corvo
Pávido: tomado de pavor
Chalaça: dito ou feito espirituoso, zombeteiro, escárnio
Esgar: jeito, careta de escárnio
Atufar: fazer crescer, tornar inchado
Lobrigar: enxergar com dificuldade na escuridão
Tacão: salto do calçado
Roçagante: que se roçaga, que se arrasta
Derriço: encontro, conversação, namoro